Não tenho o costume de assistir ao lixo que inunda os ecrãs da televisão. Os reality shows e manobras do género. Quando estas degenerescências começaram a pular de canal em canal, informei-me do fenómeno e compreendi que não era para a minha igualha. Uma das fortes razões para quase não ver televisão.
Há dias deixei que a curiosidade falasse mais alto. Espreitei um destes reality shows – uma pandilha de mariconsos desdobrava-se em esforços para apurar o visual de um grunho qualquer, por sua vez amigado com uma grunha qualquer que, soube então, foi figura de proa de uma edição anterior de um outro reality show. Como se não fosse suficiente o envilecimento do ecrã com o casal, testemunhos de familiares dos envolvidos eram pescados do nada, dissertando sobre as belezas de um amor a dois, nomeadamente daquele cujo penhor era afivelado pelo grupo da sexualidade alternativa. Tudo se passava como se num abrir e fechar de olhos uma vida nova tivesse chegado: casa redecorada, o grunho domesticado nos seus ímpetos de mau gosto, a cara-metade grunha apanhada por tabela, ainda que fosse tarefa hercúlea desprender-se do ar de rameira.
Para o final do programa, o zénite: a comemoração da casa redecorada, com a chegada da trupe – família e amigos seleccionados. Os exemplares do povinho que faz da gesta lusitana um caso sem solução à vista. O povo rasteiro, da música pimba, das telenovelas brasileiras, da arenga gratuita, da higiene duvidosa, da estética ausente, do lapso de sintaxe, do garrafão de cinco litros e do courato frito e bem esturricado, da camisola de alças que deixa os bíceps cabeludos à mostra, das senhoras de meia-idade que trajam orgulhosas tatuagens uns centímetros acima do tornozelo.
Se o que vi é uma amostra da televisão no auge da era reality show, temos a democratização total da televisão. Democracia, no sentido de democracia popular, tão ao gosto da extrema-esquerda que tem na Albânia (dos tempos do “orgulhosamente sós”) e na China o seu modelo. E se em tempos na televisão desaguavam elites – não interessa discutir a qualidade do produto destas elites, apenas reconhecê-las enquanto tal – agora o espaço é monopolizado pelo povo anónimo que chega ao estrelato com facilidade. Com a anuência das massas que engrossam as audiências, porque se revêem no anónimo exemplar que saiu da vida incógnita para se expor, sabe-se lá a custo de quantas figuras ridículas, nos néons que culminam um projecto de vida.
Que interessa se umas figuras em minoria protestam contra a espiral que empurra a qualidade da televisão para o nível mais rasteiro? Que interessa a opinião das elites, se elas nada podem contra a força gigantesca da anónima massa que consome com voracidade o formato? Interessante confluência de pólos opostos: quando se pensava que os fautores do capitalismo e os arautos da democracia popular viviam de costas voltadas, afinal estão na mesma barca, entusiasticamente remando juntos para o mesmo lado.
Os feitores da democracia popular, reconfortados por serem testemunhas da ascensão do povo, que agora detém os cordelinhos das opções de programação. Sinal de que a profecia ideológica de Mão Tsé Tung e discípulos se cumpre. O desígnio histórico: nada contra a força avassaladora da vontade popular. É a ditadura do povo na sua versão sofisticada, modernizada. Os capitalistas que financiam o produto e se alambazam com os lucros, resignados à emergência da vontade popular por saberem que essa é a receita milagrosa para encher o bornal dos lucros. De mão dada, uns e outros semeiam a fatal entronização do povo. Pela televisão, e através dela, o destino anunciado como tabuleta que descreve o rumo de um autocarro de carreira citadina: a ditadura do povo, como se uma ditadura alguma vez fosse sinal de democracia, e como se democracia fosse o produto da vontade popular afirmada através da televisão.
Substitua-se o voto, e os governantes, pela moderna forma de exercer o poder – a voz do povo entoada através dos programas da televisão. E se o povo quer lixo, quem são as aves de arribação que nidificam nas elites para contrariar a vontade popular? Tempos de outrora, esses em que as elites se arrogavam ao direito de “educar as massas”. O povo emancipou-se, chegou à maioridade, dispensa a generosidade das elites. Só falta convencer o povo que tudo isto foi profetizado pela extrema-esquerda; o passo que se segue: levar o povo a agradecer votando na extrema-esquerda tão sequiosa de poder.
(No Montijo)
Sem comentários:
Enviar um comentário