Ontem participei num debate em que se discutia a relação causal entre globalização e violência: será a violência – terrorismo ou violência urbana – uma consequência da globalização, urdindo uma massa de descontentes que expressam a exclusão através de meios violentos? Será a violência, em si, uma expressão da globalização, espalhando-se por todo o mundo, de braço dado com o fenómeno da globalização que cresce de intensidade?
No debate, o recente episódio de violência em França concentrou a atenção. Ensaiei uma interpretação político-económica dos acontecimentos. Uma interpretação alternativa, assumindo que o mainstream, por cá e no estrangeiro, alinhavou uma teoria que denunciava o capitalismo selvagem e a globalização desenfreada como culpados da violência. Não quis entrar pelos meandros sociológicos do problema, por mais interessante que fosse questionar as abundantes teorias que tentaram justificar os actos de violência. Com a minha interpretação alternativa procurei rejeitar a ideia de que a maldita globalização se sentava no banco dos réus por mais um desmando do mundo.
Escudei-me em dois argumentos. Primeiro, vi neste fenómeno o preço que a Europa paga pelo falhanço das suas políticas de ajuda ao mundo subdesenvolvido. Relembrei o fardo do passado que pesa sobre os ombros dos europeus. Sobretudo dos que têm a História manchada por uma colonização nada exemplar. E de como isso seria suficiente para inscrever a ajuda ao desenvolvimento como prioridade de acção. A intensidade e a eficácia ficaram aquém do desejado. Tanto que os países ajudados continuam mergulhados no subdesenvolvimento. Tanto que a pobreza continua a causticar as populações nativas, que encontram na emigração a solução final em busca de algum bem-estar.
Especulei: fosse eficaz a ajuda ao desenvolvimento dos países europeus e decerto os fluxos migratórios não teriam a mesma intensidade. Nem existiram os problemas de assimilação que agora se identificam. Parece que os europeus foram apanhados numa ratoeira que eles construíram ao longo do tempo: como enriqueceram tanto, são a terra prometida para os excluídos do bem-estar material; e o insucesso da ajuda ao desenvolvimento acentuou as assimetrias, levando à saída em magotes para os países europeus.
O segundo argumento foi o que desencadeou polémica. Diagnostiquei a falência do modelo social europeu como sintoma da erupção de violência em França. Ofereci este argumento em antinomia com a ideia dos que acusam a globalização como fautora de todos os males do mundo, e inevitavelmente da violência de rua em cidades francesas. Para estes, os acontecimentos mostram que estamos carentes de mais welfare state. Contestei a linha de raciocínio. Intui que a violência teve lugar no coração do modelo social europeu, num país que, mau grado a ambiguidade no acolhimento a imigrantes, sempre se distinguiu pelos benefícios generosos do sistema de protecção social. Diz o adágio que quando a esmola é muita, o pobre desconfia. Apetece adaptar o adágio ao contexto: quando a esmola é muita, a insatisfação não se apaga e a mão continua estendida a clamar por mais esmola (descontado o exagero da comparação entre os benefícios de segurança social e a esmola).
Em nome de a honestidade intelectual, confessei influências filosóficas e políticas que inspiram a preferência por um modelo liberal. Sem que daqui se pudesse concluir qualquer simpatia pelos Estados Unidos – pois que o liberalismo que defendo, nestas matérias, vai bem além do sistema menos intervencionista dos Estados Unidos. Admiti que o meu diagnóstico se podia confundir com um wishful thinking pessoal, um vaticínio que traduz preferências pessoais. Sem que a objectividade fosse beliscada, quando nos é dado a observar o que se passa em países como o Canadá e o Reino Unido, onde o modelo social europeu está ausente e existe uma notável assimilação das comunidades imigrantes.
Na análise de fenómenos sociais, o analista toma o lugar do médico que diagnostica os sintomas de uma doença. Nesse papel vejo a Europa dentro de um espartilho que a asfixia, sem se dar conta da maleita. Quando o modelo social europeu se põe em funcionamento, é a imagem de uma sociedade que carece de uma entidade superior pronta a mostrar um sentimento protector, diria paternalista. Há algo de irresponsabilidade individual no modelo social europeu. Não terá a violência nas cidades francesas sido uma manifestação de irresponsabilidade individual? Não há, entre os que vasculham fundamentos para mais Estado social, razão para invocar a obrigação do Estado promover uma política de emprego para ocupar os quase 25% de desempregados entre os jovens imigrantes em França? Como se, com uma varinha mágica, o Estado pudesse inventar empregos.
Por mais que custe aos adversários dos que não gostam do modelo social europeu, do outro lado do Atlântico há bons exemplos a seguir. Basta que se dispam de preconceitos e aceitem que os Estados Unidos não são o demónio propalado pelos argutos defensores da “alter-globalização”. Não tenho a mínima simpatia pelos Estados Unidos, devo dizer. O que não me impede de admitir que um modelo social menos generoso é mais eficaz para os desprotegidos. Basta comparar taxas de desemprego, a dificuldade com que se deparam os desempregados na Europa e a facilidade com que os desempregados do outro lado do Atlântico encontram empregos. Pudesse o paternal Estado diminuir de tamanho e deixar que o mercado funcionasse, e talvez alguma desta violência não teria acontecido. Mas, já sei, isto é apenas uma especulação!
3 comentários:
Caro Paulo,
Três notas apenas:
1) Não me parece que aquilo a que chama o seu primeiro argumento seja totalmente consequente com a sua defesa da globalização. Em forma de pergunta: está a globalização a resolver os problemas (bem identificados no seu texto) que a Europa e o mundo ocidental têm com os países subdesenvolvidos? Pensemos apenas nisto: qual é o limite de uma deslocalização? Encontrar mão de obra escrava e dizer posteriormente que, nesse contexto, há pleno emprego?
2)Não nos esqueçamos que o intocável , do ponto de vista de uma política de emigração, Reino Unido foi atacado em Julho por islâmicos há muito ocidentalizados e integrados no modus vivendi britânico. Dizer que foram "lavados" no Paquistão só ilude o problema.
3)De que emprego falamos, quando falamos de muitos dos empregos dos EUA? Emprego sempre precário? Duplo emprego para sobreviver? Mais ou menos um quinto da população no limiar da pobreza? É esta uma alternativa decente à reformulação que urge fazer ao modelo social europeu?
Rui:
1. Uma resposta com outra pergunta: e porque deve a globalização (o mercado globalizado, bem entendido) ser responsabilizado pela factura da colonização mal feita? Lembre-se que quem a fez foram Estados, não empresas. Em relação aos limites de uma deslocalização, percebo o seu argumento. A fuga de uma empresa para outros mercados onde não existem garantias para os trabalhadores, onde há trabalho infantil, etc., é indecorosa. Mas veja o outro lado da questão: será que esta deslocalização não é um meio de aumentar o bem-estar de populações empobrecidas? A criação de emprego não promove este efeito positivo? Donde, a deslocalização de empresas para países mais pobres é uma forma de ajuda ao desenvolvimento (concedo: interessada), coisa que os governos dos países ricos têm sido incapazes de fazer com eficácia.
2. Acho que a comparação que fez neste ponto não é rigorosa: comparar violência urbana (o que discutimos ontem) com terrorismo é misturar planos que se encontram em níveis diferentes.
3. Partimos de concepções diferentes de emprego. Para mim, o emprego precário não é um problema. É, antes, sinal de um mercado dinâmico, que oferece oportunidades às pessoas. Quando se concebe a segurança do emprego como prioridade estamos a condenar os mais jovens e os que entretanto adquirem novas competências a vegetar na indigência das condições de trabalho miseráveis. Os privilégios de quem se recolheu à sombra das benesses de um sistema que premeia o estatuto, a antiguidade, em vez do mérito, a isso leva.
Obrigado pelos comentários!
Paulo
Caro Paulo,
Concordo com a sua observação ralativa ao meu segundo ponto: comparei o incomparável.
Quanto ao resto, dizer-lhe que gostei de discutir estas questões consigo; dizer-lhe ainda que tem um execelente blogue ao qual penso voltar.
Rui Estrada
Enviar um comentário