Já lá vão onze noites consecutivas de terror nas ruas de cidades francesas. Nos areópagos do politicamente correcto, dançam teorias que passam ao lado do essencial: a culpa é de nós, que acolhemos mal os emigrantes; da deriva liberal, qual dose de arsénico que tem vindo a matar aos poucos o modelo social europeu; da presença da polícia que estimula reacções violentas em quem se sente acossado; a eito, da maldita globalização, que enriquece uns poucos enquanto vai remetendo à pobreza aviltante cada vez mais gente.
Que se diga que o ministro do interior, Sarkozy, reagiu com a delicadeza de um elefante em loja de porcelana, é um argumento aceitável. O ministro protestou contra a violência gratuita e disse que era necessário “limpar a escumalha”. O que serviu para alimentar a escalada de violência. E também serviu para se misturar as causas e as consequências: Sarkozy foi infeliz com aquelas palavras, para mais numa sociedade que tem resvalado para a xenofobia (numa linha de fronteira muito ténue entre a xenofobia e o tradicional chauvinismo francês). Mas a violência gratuita vem de trás. É certo que se generalizou a toda a França depois da boutade de Sarkozy, mas a violência já tinha sido ateada antes.
Por aí já andam em bicos de pés inefáveis criaturas que vêm nestas manifestações um retomar do Maio de 68. Como se as coisas fossem comparáveis; como se as razões dos protestos fossem as mesmas. Percebe-se o enlevo lírico de quem ficou órfão de referências: se não se agarram às paredes da nostalgia, acabam mirrados nas ideias que sempre vindicaram e que têm sido campo de sucessivos insucessos. O que lhes interessa é desculpabilizar os comportamentos de quem tem semeado a violência cega e gratuita. A culpa está a montante: nas discriminações que os emigrantes sofrem, nas expectativas não satisfeitas quando chegam a França, na exclusão social. Eis os pretextos para aceitar a violência que brutaliza tudo e todos, indiscriminadamente. Se os jovens que espalham o terror queimam carros, vandalizam lojas, atacam inocentes – nada disso interessa perante a “grandeza” da causa que os mobiliza.
É a miopia intelectual. A sociedade francesa não é o sétimo céu do acolhimento a estrangeiros. As medidas recentes que levaram à discriminação de muçulmanos, ainda ciosos de símbolos que identificam a sua pertença religiosa, são criticáveis. O que não se pode é caucionar a violência como arma de arremesso, como se os actos de violência resolvessem os problemas destas pessoas. Creio que terá o efeito contrário: acicatar ódios, extremar posições, semear ainda mais violência (basta ver que já se formam brigadas civis para defender a propriedade dos vândalos que andam à soltam), enfim, fortalecer a imbecil extrema-direita de Le Pen.
Vejo os esquerdistas militantes, saudosos do Maio de 68. Vejo-os preocupados, mas acima de tudo excitados com os tumultos. Vejo-os tentar justificar os desmandos. Estendem o braço magnânimo, e chegam a legitimar a violência. E dá-me pena que não sejam eles a sofrer na carne as consequências da violência estúpida que cobriu a França de lés a lés. Quando os oiço a dissertar no conforto da distância do palco da violência, como gostaria que os seus carros tivessem sido vandalizados pela turba selvática, que os seus comércios tivessem ardido por entre os cocktail molotov arremessados pelos jovens em fúria. E depois gostaria de os ver, com a mesma tranquilidade, a legitimar a violência sem sentido.
Vergonhosa reacção de quem procura encontrar um sentido para os motins que puseram a França em estado de sítio. Mostra como estes sectores não respeitam o direito de propriedade. Melhor: como espezinham o direito de propriedade alheio, porque o seu é sagrado. Mais importante do que saber se há razões fortes que justifiquem (ou até legitimem) a violência, é olhar para as vítimas inocentes dessa violência – os que encontram os seus haveres destruídos pelas chamas ateadas pelos cocktail molotov.
Só falta aos inenarráveis legitimadores dos motins dizer que os franceses estão a ter o que merecem: pelo detestável chauvinismo que abre as portas à xenofobia e à exclusão dos emigrantes, pela escolha de um presidente e de um governo de direita. Não o dizem, mas aposto que os nostálgicos do Maio de 68 pensam nisto, num sucedâneo de “justiça divina” feita pelas próprias mãos dos que sofrem a discriminação. Se acaso tivesse dúvidas se serei de esquerda, momentos destes seriam suficientes para me situar fora desse quadrante.
Sem comentários:
Enviar um comentário