28.11.05

Crucifixos e escolas

Fobia regulamentadora sem cessar. A negação da tolerância verte-se de uma e mais outra intervenção de quem tem o poder na mão. É o paraíso dos engenheiros sociais, crentes que no alto da sua infalibilidade resguardam o segredo de uma poção mágica que dirime conflitos entre grupos. Onde põem a sua milagrosa mão, espalham as sementes de um terramoto. Ficam as coisas piores após a sua, afinal, falível intervenção.

Uma associação qualquer que zela pela não discriminação religiosa protestou contra a afixação de crucifixos em determinadas escolas da zona norte. Consta que a lei obriga a retirada dos crucifixos, ou outros símbolos religiosos, sempre que ofendam as convicções de alguém, e que esse alguém reclame contra a sua existência. Ironicamente, a tal associação, constituída contra a discriminação religiosa, nem sequer terá dado conta que estava a propor um acto de discriminação religiosa…

Sinto-me à vontade na matéria, pelo agnosticismo angustiante. Não estou em defesa da igreja católica, nem da perpetuação da sua influência junto das pessoas que têm a liberdade de afirmar a sua crença. Já tive ensejo de exercer a cáustica crítica contra algumas orientações de hierarquia eclesiástica. Se fosse agora o momento, estaria a escrever sobre a patética decisão de vedar o acesso ao sacerdócio a homossexuais. O que está em causa é o espartilho de certas consciências bem pensantes, sempre na linha da frente contra a abusiva presença da igreja católica na sociedade.

São os que se emproam de atributos tolerantes e agendam como prioritária a não discriminação entre as igrejas. Às vezes confundem a sua linha de acção com a defesa de um Estado laico, totalmente separado das religiões, quaisquer que sejam. Escudam-se na Constituição, que vinca com clareza a separação entre Estado e igreja – coisa nunca conseguida, em mais uma demonstração de como as leis dos homens esbarram nos costumes que uma maioria desses mesmos homens se habituou a cultivar (basta lembrar a “obrigação” da bênção bispal em solenes cerimónias que pontuam inaugurações de obra pública). Aos fautores da não discriminação religiosa – que se confundem com militantes detractores da igreja católica, sempre à espreita de mais um texto beato de João César das Neves para soltar a sua língua afiada – falta um senão de grande importância: saberem ser tolerantes.

Agarram-se à tábua de salvação que é o passado escuro da igreja católica. Invocam a inquisição, as perseguições religiosas, um passado de privilégios, a cumplicidade com déspotas. Sublinham como a igreja católica tem sido um expoente de intolerância. E depois de tanta ênfase nestes vícios, cometem o mesmo pecado. Exibem a mais lamentável intolerância, esboçam manobras que projectam cercear direitos aos católicos. Perturba-me este tipo de comportamento: aos desmandos do passado responde-se com intolerância hoje, como se o clima de conflito latente tivesse a arte de resolver problemas. O pior é a moralidade triunfante de quem enche o peito de razão ao vergastar a igreja, denunciando os seus pecadilhos, para logo de seguida os imitar.

Sou agnóstico. Mas não tenho problemas em estar num local onde esteja afixado um crucifixo. Nem me ofende visitar uma mesquita, ou assistir a um casamento protestante, ou jantar em casa de uma família hindu observando os preceitos religiosos que antecedem a refeição, ou respeitar o credo hebraico. Agora que tanto se fala de um conflito de civilizações, e que se projecta esse conflito como um choque de religiões, é intrigante como, a uma escala menor, resumida ao território de um pequeno país, se encontra uma representação desse tipo de conflito.

Há quem tente impor soluções que agradam a minorias, desprezando o sentir das maiorias. De regresso à proibição dos crucifixos nas escolas: olhando ao contexto (o norte do país, onde as convicções religiosas são mais arreigadas), não é delírio adivinhar que uma esmagadora maioria de alunos e famílias é católica. Será maior o sacrifício de cercear o direito à expressão religiosa desta maioria, ou não atentar à sensibilidade de uma minoria que não se revê no catolicismo?

A orgia das proibições é o abismo por onde se atiram, de cabeça, os engenheiros sociais que têm em mãos os cordelinhos do país. Uma espécie de bebedeira constante, a atracção pela proibição como exibição da sua tão grande autoridade. Um sucedâneo do “complexo da farda” que caracteriza os polícias. Desfile constante de intolerância, espezinhando sem cessar a liberdade individual.

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