2.11.05

Quando a hipocrisia vence os sentidos

Fico perturbado ao ver as imagens dolorosas de mendigos que se refugiam do frio cortante debaixo de uns cobertores, acolhidos sob o céu gélido. Inquietam-me as histórias de pessoas que se encontraram com a sorte madrasta da vida: vidas tortuosas, desencontradas de si, espólios desbaratados pela sede de tentações aviltantes. Nos despojos das sinuosas curvas quantas vezes falhadas, uma família perdida, uma alma sem abrigo, a tristeza que carrega os olhares cinzelados por olheiras de noites sem dormir.

Quando ouço estes testemunhos, ou quando deparo com mendigos que são a imagem da tristeza de mão dada com os andrajos que carregam, é a angústia que se apodera de mim. Não é comiseração, nem sensibilidade social pelas chagas que mostram que a pobreza e a miséria pessoal são um timbre da sociedade avançada. Angústia por saber que há vidas que se consomem na mais profunda tristeza, mais penosa que a carência material que asfixia os mendigos. Coisas que para os que se acolheram na asa da sorte são minudências que escapam aos sentidos dos mendigos – um lar, o conforto mínimo, refeições assíduas, o carinho dos entes queridos.

Angustio-me com a miséria pungente. O aperto que me leva o ar semeia a hipocrisia: em vez de olhar com atenção para as chagas que me cercam, em vez de me deixar contagiar pela mágoa que consome os indigentes, há algo dentro de mim que desvia o olhar para o outro lado. Impera a necessidade de fazer de conta que as misérias dos outros não se cruzam no meu caminho. Encarar de frente a miséria que vive paredes-meias é um lagar de mágoas quando a imagem dilacerante do pedinte fica a pairar constantemente na minha cabeça.

E sei que sou hipócrita quando escapo à dor de ver a miséria dos outros. A fuga é uma alavanca irreprimível, uma válvula para me tirar do mundo de carências (materiais, afectivas, de bem-estar) que atormentam vidas alheias. Direi: que posso fazer para obviar à miséria dos outros? O muito pouco que posso dar não terá mister de aliviar as carências dos que vivem à míngua e se cruzam no meu caminho. A fuga para outro lugar, um imaginário lugar onde não sou tomado pela dor de consciência que a hipocrisia impõe, é um pretexto para desfigurar a dolorosa visão de indigentes que vagueiam no nada em busca do nada.

Dizem que a miséria não é voluntária. São os excluídos pela desdita do lugar e do modo em que vivemos. Desabonados pela sorte, a adversidade teima em marcar encontro com as suas vidas. Há também a miséria por opção, nem que seja por desistência da vida. São estes os que me apoquentam mais. A pobreza social, os engulhos de quem fica no limiar da pobreza, não me toca tanto como as pessoas que parecem escolher deliberadamente o caminho da auto-punição, refugiando-se numa miséria que é o castigo para desabridas opções do passado. Só não sei se a inquietação pessoal pela pobreza voluntária é um escape para dourar a hipocrisia que emerge quando asfixio os sentidos toldados pelo ocaso da miséria alheia.

Talvez seja egoísmo. A recusa em olhar de frente para um mundo de desgraças alheias que em mim pontuam a angústia. Na recusa de fazer caridade como ponte para a salvação noutras dimensões, resta-me mergulhar na impiedosa indolência de mim mesmo, quando desvio o olhar das misérias que desfilam na rua. É a recusa de me consumir numa dor pessoal contagiada pela dor alheia – essa que apenas cada mendigo é capaz de suportar, na impossibilidade de tornar tangível, e inter-pessoal, a dor causada pela carência de afectos, pela carência material.

Outra vez, uma hipocrisia pedra angular de uma angústia que não cessa de me afligir quando a indigência alheia é recusada pelo olhar que a quer disfarçar. Bastam-me os instantes em que os olhos se cruzam com mendigos que ficam todo o dia imóveis no mesmo lugar, o olhar perdido no infinito, pensamentos vogando sabe-se lá em que sonhos. Se é que há lugar aos sonhos, nestas vidas que se perderam algures, num tempo qualquer.

Por não querer, nem poder, partilhar a dor alheia, vou vogando na barca da hipocrisia: para que a tristeza dos outros não passe testemunho e me invada. Já o disse: porventura egoísmo, maleita da hipocrisia que me domina num fictício universo que mostra o lado limpo de um lugar esvaído de miséria. Construção asséptica, imaginada, palco de um inanimado recolhimento na dormência de mim mesmo. Porque sei que a miséria dos outros povoa a dor lancinante, deixo-me levitar na anestesia que faz de conta que este é um lugar diferente. As ilusões são a marca que idealizamos para fugir do lugar que nos atormenta o espírito.

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