Absurda, a guerra comercial que a Europa comprou à China. Por um lado, a China é um parceiro comercial cuja grandeza não pode ser menosprezada. Sem contar com a elevada capacidade negocial da diplomacia chinesa. Por outro lado, na União Europeia permanecem activas bolsas de resistência à liberalização do comércio de têxteis. São os interesses afectados pela abertura do mercado europeu às exportações chinesas. Nada que fosse surpresa para os industriais europeus. Estava tudo programado nos acordos que previam para 1 de Janeiro de 2005 a liberalização de trocas comerciais entre a China e a União Europeia (no domínio dos têxteis).
As autoridades europeias têm sido sensíveis à pieguice dos industriais do sector. Manobras dilatórias, "cláusulas de salvaguarda", etc. – o que mostra a face obtusa de uma União Europeia que rivaliza, no pior, com os Estados Unidos: só interessa a abertura de fronteiras quando favorece as exportações; quando a entrada de concorrentes estrangeiros implica a perda de privilégios dos industriais europeus, há que fechar as fronteiras. No ar fica a imagem de uma Europa batoteira, incapaz de cumprir os compromissos internacionais que firmou. Uma Europa mais preocupada com os interesses minoritários de uns (industriais do têxtil), fazendo tábua rasa dos interesses maioritários de outros (os consumidores: a entrada de têxteis chineses soa a poupança de recursos pelos preços mais baixos a que os poderiam adquirir).
Depois de alguns meses de acalmia – a última revoada noticiava milhões de soutiens chineses que, armazenados, ansiavam por adornar os seios carenciados das europeias – nova incursão. É compreensível que os chineses queiram o cumprimento dos acordos. E quando reclamam o acesso ao mercado europeu, lá se soltam da casota os mais imprestáveis representantes da indústria têxtil. Desdobram-se em argumentos ilógicos para justificar as restrições adicionais às exportações chineses. Sem perceberem que a pressão sobre políticos de fraca têmpera (porque não sabem resistir à pressão) corporiza a mais lamentável manifestação de como somos educados a honrar compromissos. Pois se os acordos internacionais, assinados pelas autoridades, são postos em banho-maria, porque não há-de o cidadão comum copiar o comportamento?
Ao escutar as declarações de um dos porta-vozes da indústria têxtil, sou de repente assaltado por uma dúvida existencial: e se acaso fosse convidado para ocupar o lugar de uma destas criaturas? Há uma explicação para o auto-teste. Por convicção ideológica e deformação profissional estou nos antípodas do que é defendido pela associação que representa os interesses têxteis. A convicção ideológica, por ser um obstinado “ultra-liberal”, para quem qualquer intervenção estatal ressoa a efeitos perversos de bem-estar. E por deformação profissional: quando ensino Economia Internacional assumo a postura “ultra-liberal” e não me coíbo de ventilar a ideia de que a liberalização do comércio internacional é melhor que os obstáculos colocados pelos países, independentemente da motivação que os leva a erigir os obstáculos.
Daí o putativo dilema, para medir o pulso à integridade do escriba. Para saber até que ponto a força das ideias e a verticalidade de que ele se reclama são poderosas ao ponto de afastar os ameaçadores ventos do pragmatismo. Aqui a dúvida é entre continuar fiel às ideias, manter a coerência com o discurso aos alunos (e, não conseguindo fugir às responsabilidades pedagógicas, não me demito de um exercício de sensibilização da cidadania dos alunos); ou deixar-me de requintes ideológicos, espantar o fantasma das utopias, deixar vir à superfície o pragmatismo. Pragmatismo que faria supor uma tentadora remuneração fazendo lobbying em favor dos industriais do ramo.
Não sou advogado do lírico princípio do “amor e uma cabana” como factor de realização pessoal. Tenho os meus pecadilhos consumistas, a ambição de melhorar o bem-estar familiar. Sei que não é de vento que se alimentam as ilusões. Seria suficiente para vacilar, numa báscula entre a prisão da coerência ideológica e a tentação do pragmatismo? Nos últimos dias, nos tempos mortos, dei comigo a meditar no assunto. Para concluir que não seria capaz de aquietar a consciência se deixasse vencer o vento do pragmatismo. Ingénuo, decerto. Mas incapaz de negar o que tenho vindo a dizer à minha audiência restrita durante anos a fio. Incapaz de mergulhar na incoerência. Incapaz de ferir a consciência. Para isso, ia para político.
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