11.11.05

Geração MTV

Lisboa nos desígnios divinos, escolhida para a cerimónia de entrega dos “MTV awards”. Razão para uma multidão de adolescentes e já-não-tão-adolescentes fervilhar de ansiedade, na esperança de um contacto visual com o artista que preenche os sonhos que têm tanto de beleza como de impossibilidade. Por uns dias, os holofotes do mundo estiveram direccionados para Lisboa. Para enobrecimento do brio pátrio, mesmo dos que são alheios à manifestação e enchem o peito de orgulho porque Lisboa aparece, por uns dias, no mapa do mundo.

Tivemos direito ao glamour da indústria musical que tem acolhimento na MTV (ou lhe dá razão de vida, numa roda dentada onde causa e efeito se confundem em osmose). O apanágio do entretenimento cheio de tiques norte-americanos – apesar dos galardões serem entregues pela MTV Europe, prova de como os norte-americanos não se cansam de tentar colonizar a Europa. Muito show off, muita luz que em feixes cintilantes se deslocava de cima para baixo, em busca de efeitos visuais estonteantes. Coreografias estudadas ao milímetro, dir-se-ia que os bailarinos estavam presos entre si por invisíveis cordéis que os compassavam ao milésimo de segundo. Os artistas principais, saídos do seu casulo deificado, com a pose distanciada de quem alcançou os píncaros da fama, mais as excentricidades que o deixam de ser pelo estatuto em que foram investidos.

Muito o papel de embrulho que envolve o evento. Aliás, a impressão que o acontecimento tem mais a ver com as carradas de papel de embrulho com que o produto é vendido do que com a sua substância. Muito pouco de música, muito mais de imagem meticulosamente tratada, de comunicação bem planeada para arregimentar mais fiéis, a garantia do sucesso comercial que enche os bolsos de editoras e artistas, com a conivência de estações de rádio e de televisão que formatam os gostos musicais à medida das prioridades negociais das editoras. A bitola da qualidade desce a um nível indizível. Em bom rigor, não é de qualidade que se alimenta a indústria – antes de êxitos que se consomem com voracidade, quantas vezes remetendo ao anonimato artistas que outrora foram êxitos retumbantes sem sequência.

Os adolescentes e já-não-tão-adolescentes são o público-alvo, operam a iníqua redistribuição de riqueza. Eis um case study para os saudosos do esqueleto marxista: como o capitalismo, na figura da indústria musical, impõe o enriquecimento dos mais ricos (as editoras multimilionárias e os artistas que acumulam êxitos) a expensas da imbecilezação de acéfalos adolescentes e já-não-tão-adolescentes que ficam em pulgas para ver, nem que seja ao longe, na porta do hotel, os heróis em carne e osso. Os órfãos da tralha marxista podem apontar a dedo o caso da indústria musical que alimenta o espírito MTV como paradigma da injusta redistribuição da riqueza. E prometer, em programas eleitorais, que a MTV deixe de chegar aos lares.

Ouve-se falar da geração MTV como se fosse fenómeno inaudito. Ideia errada. A geração MTV é uma réplica actualizada das adolescentes dos anos sessenta que consumiam com avidez os êxitos dos Beatles. Então como agora desfaziam-se em gritinhos histéricos – ainda que os desfalecimentos públicos sejam coisa banida do léxico da actual geração MTV, mais senhora de um auto-domínio que as adolescentes dos sixties não possuíam. Fechem os olhos: ouçam uma reportagem em torno dos Beatles, tomem atenção à gritaria como pano de fundo; continuem de olhos fechados, agora no take dois, a mesma gritaria que ensurdece quando os artistas do momento entram em cena na MTV. De olhos fechados, é impossível distinguir a gritaria de agora da gritaria de outrora. Gritaria à mesma, a chancela para a admiração nutrida pela horda de fãs de um artista. Quanto mais os gritos, e quantos mais estridentes, sinal de que o artista do momento é arrebatador junto da audiência.

O auge da gritaria: há tempos, reportagem que antecipava a borbulhagem à flor da pele quando os artistas reputados dessem à costa na Lisboa das sete colinas. Um casting organizado por um dos patrocinadores – a minha operadora de telemóvel. O critério de escolha era quem mais alto conseguia berrar. Os candidatos eram convidados a encher os pulmões e deitar cá para fora, prolongadamente, toda a fúria do mundo com o vozeirão com que foram agraciados pelo aleatório factor divino. Os que carimbassem os decibéis mais elevados tinham a passadeira estendida para o espectáculo, como vozes de fundo da gritaria encenada. E deve ser uma arte tão complexa que o júri viajou de Inglaterra para apreciar os dotes de vozearia dos adolescentes e já-não-tão-adolescentes lusitanos.

Lição de vida: emoções exteriorizam-se em gritos, como se em turba regressássemos a uma animalesca forma de convivência nos grunhidos histéricos que se soltam.

Sem comentários: