Quantas vezes, prisioneiros dos quadros mentais, abreviamos análises para o atalho da conclusão precipitada sobre a pessoa que surge por diante? A tentação de rotular pela sua aparência, pelo comportamento superficial (ou pelos tiques sociais), é uma armadilha traiçoeira. Contra mim falo, também arrastado para esse lodaçal pelo instinto que comanda os sentidos.
No ano passado apareceu uma professora nova. Loura espampanante, a entrar na meia-idade, exibindo trejeitos de dondoca. Distinguia-se pela classe do que trajava, pela pose senhorial, pela distância que cultivava. Quando a vi pelas primeiras vezes encaixei-a na gaveta das “tias burguesas com elevadas aspirações sociais”. Construí uma expectativa. Que não era boa, pela demissão dos afectos pessoais quando as senhoras daquela classe, cheias de vacuidade, estão no ponto de mira.
De pessoas com quem já falei acerca da professora, nem a mínima expressão de simpatia por ela. As motivações da aversão, sempre as mesmas: a pose de tardia estrela da moda, o distanciamento que se confunde com tratamento impessoal, mas sobretudo a aparência exterior que traz aos olhos dos “julgadores” alguém que está deslocado do contexto. São os estereótipos em todo o seu vigor. Não será por coincidência que sempre a vi desacompanhada. As poucas pessoas que a cumprimentavam faziam-no por dever de educação. Poderá dela transparecer uma gélida aparência que não convida ao “estreitamento de relações” (ou ao convívio, num enlevo mais prosaico).
Nunca tive uma conversa com ela. Cumprimentamo-nos com cordialidade, é tudo. E, no entanto, perturba-me saber que carrega o rótulo de futilidade, afinal a imagem de marca das “tias burguesas com elevadas aspirações sociais”. Que interessa o currículo académico, as habilitações, as características pessoais que lhe franquearam a entrada no corpo docente? Por cima dessa avaliação objectiva, espreitam os quadros mentais rígidos que, maquinalmente, conduzem às catalogações imediatas. A etiqueta colocada é a maior das barreiras mentais para conhecer as pessoas como elas são na sua essência – e não como mostram pela aparência.
Também há o caso daquele professor, impecavelmente apessoado, visto no imaginário dos alunos como personagem sensaborona, cinzenta, reservada ao seu estreito cubículo profissional – uma espécie de Cavaco sem aspirações políticas, sem atracções keynesianas, com melhor aspecto e sem problemas de dicção. E de como traz a surpresa quando se discute música e poucos conhecem as suas referências musicais, ou quando se fala dos aspectos corriqueiros da vida e tomam conhecimento da sua visão libertária. Ou quando um aluno, pela aparência (caindo na contradição) seguidor dos folclóricos movimentos da alter-globalização, concluiu no final de uma conversa que, pela deambulação filosófica por que ambos andaram, eram mais as coisas em comum do que as divergências. Apesar do “ar conservador” do seu interlocutor, na confissão do aluno. Que admitiu que a forma de vestir do professor era uma barreira que ele edificou imediatamente, algo que no início o inibiu.
As reservas mentais vindas da estreiteza de todos nós, quando somos empurrados para os estereótipos, são um alçapão que esconde pessoas interessantes com as quais julgamos não haver identificação. O mais interessante é notar que os preconceitos visuais tanto partem das mais boçais figuras que planam nas ruas, como das elites que se dizem descomprometidas com o preconceito.
Um exemplo: há mais de dez anos, saí de uma aula terminada às dez da noite para um concerto de música alternativa, algures no centro do Porto. Sem tempo para me desfazer do “uniforme” profissional, foi com alguma perturbação inicial que entrei na sala e reparei que era olhado de cima a baixo pela pequena multidão. Notando que alguns não conseguiam disfarçar o seu incómodo pela chegada de alguém vestindo fato e gravata. Porque os professores não têm que ser todos feios e porcos, como é vulgar na vanguarda europeia do ensino superior.
Talvez esteja errado: nos alvores das verdades incontestáveis a que estas elites culturais se arvoram, as suas exibições de discriminação baseadas na aparência exterior (que não se identifica nos seus próprios sinais identitários) não podem ser engavetadas na categoria dos preconceitos. Porque preconceitos, só os outros os têm…
Sem comentários:
Enviar um comentário