10.11.05

Na gotejante ingenuidade: porque somos corruptos?

Uma saborosa discussão com alunos. Um grupo com maturidade acima da média, olhando para a fraca gesta acabada de sair dos cueiros da adolescência. E muita descrença na terra que os viu nascer, no sistema político, na classe de políticos que se esgadanha para tomar conta do poder.

Numa lúcida revolta, alguns exibem uma insatisfação sustentada. Não estão descontentes por desconhecimento. Nem sequer por ser a mais cómoda posição que podem assumir no anonimato de um cordato rebanho que se limita a cumprir deveres que se dizem cívicos. Dois deles insurgem-se contra a militância abstencionista. Entendem que há aí uma corrupção adicional do sistema já de si apodrecido. São os desistentes que em nada contribuem para mudar o rumo. Preferem a pedagogia do voto em branco. É a melhor manifestação de protesto contra a incapacidade regente, sem se excluírem do regime com tantos defeitos que, contudo, continua a ser o menos mau de todos os regimes.

Sem forçar a nota – porque abstencionista convicto não me confessei – tento-lhes abrir outra janela de entendimento: que a abstenção não pode ser vista de forma tão lapidar. Há quem se abstenha por insatisfação, como há quem esteja voluntariamente à margem do sistema, ou os que preferem passar o dia na praia sem que o ócio lhes perturbe a consciência por não terem satisfeito deveres cívicos. Os meus interlocutores mantêm o cepticismo: insistem que a abstenção é uma demissão de responsabilidades. Que os que fogem das urnas perdem legitimidade para protestar contra os devaneios da governação. Por se auto-excluírem, dizem, perdem o direito de opinar.

Não contrariei o radicalismo que cavalgava à solta. Para que não percebessem que um dos seus professores representava algo que eles criticam com empenho. Não receava ficar prisioneiro de um dilema de consciência: achar que a minha omissão era a uma auto-castração, impedido que estava de confessar a abstencionista condição. Não para que os alunos não levassem da sala uma decepção da minha pessoa. Deixei-me levar pela omissão para manter viva a chama da discussão que nos entretinha.

Pergunto-lhes: o que mais os desgosta? Resposta pronta de um deles, subscrita por quase todos os outros: a corrupção. De quem chega ao poder e se aproveita da sinecura para engordar o património. E de quem se abeira dos detentores do poder e lhes acena com dinheiros sujos que são a caução para regalias que, de outro modo, seriam inacessíveis.

Retenho a fonte das preocupações. E deixo-me guiar por uma ingénua torrente, para perceber o que leva tantas pessoas a mergulhar na pérfida corrupção. Admito que as generalizações são terreno minado: há quem exerça o poder como se fosse um sacerdócio, afinal a obrigação natural de estar ao serviço de quem é governado, não a corruptela de usar o poder em proveito próprio. Ademais, as suspeitas de corrupção raramente passam deste estado: terreno movediço, em que muito se sabe sem ser possível provar. Logo permitindo exageros: quantas vezes se coloca na barca da suspeição quem lá deve estar e quem, por antipatia pessoal, acaba por lá ir parar?

Na deriva ingénua, pergunto-me que maleita se apodera dos detentores do poder quando, chegados ao poder, se deixam corromper. Como se um estigma pesasse sobre o exercício do poder, pelas tentações que oferece a quem o detém (um peculato de oportunismo) e pelas sinuosas manobras de aliciamento de quem beneficia de decisões tomadas pelas esferas do poder. No rescaldo, um sombrio quadro: governa-se para clientelas que corporizam escassas minorias, quantas vezes em sacrifício dos interesses da maioria da população. Corrompendo o mandato confiado aos detentores do poder no momento da eleição. É um golpe de estado na representatividade. Quem os escolhe é posto de lado pela tentação do dinheiro fácil acenada pelos poderosos interesses que não olham a meios para alcançar objectivos.

E as coisas podiam ser de outra forma? Que milagrosa receita para limpar este vírus que ensombra o poder, que cultiva a insatisfação que cresce com o passar do tempo? Sem solução à vista, num exercício de pessimismo sobre a natureza humana. Nos momentos em que as tentações fortes pesam sobre a cabeça, poucos os que não sucumbem à passadeira da corrupção. Para uns, o mero exercício do poder que traz até a si uma corte disposta a fazer correr muito dinheiro debaixo da mesa, ou a jogar favores que trazem outras delícias. Para outros, o simples apelo das vantagens materiais que o dinheiro a rodos alimenta.

Algures no labirinto da ingenuidade em que me quero perder, uma intenção: a de andar longe destes corredores fétidos, para não ter que me provar quando a tentação da corrupção batesse à porta. De fora, sei da minha integridade. Uma vez lá dentro, até que ponto seria fácil manter-me arreigado aos princípios? Prefiro o crivo da ingenuidade.

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