Começa em Hong-Kong mais uma ronda negocial da Organização Mundial do Comércio. A enésima ocasião para pavonear vaidades nacionais, para as delegações dos países mais poderosos olearem as máquinas de cosmética, as que operam milagres na imagem externa que querem difundir para a opinião pública mundial. Como sempre, uma batalha para ver quem fala mais alto como promotor da liberalização do comércio internacional. Entre as quatro paredes das negociações, o contraste: estender ao limite uma liberalização favorável aos interesses do país, erguendo barreiras onde o livre comércio lesa os interesses de certas indústrias nacionais.
Vinga a ideia de que vivemos em clima de liberalização do comércio internacional. Como em tudo na vida, é uma questão de relativizar afirmações. Há mais comércio livre hoje do que há trinta anos, é indesmentível. O que não significa que os tempos que vivemos sejam de franca liberalização do comércio internacional. Os governos de todos os países – com os mais poderosos à cabeça – não hesitam em obstruir o livre comércio sempre que ele causa danos aos interesses nacionais. Aqui vale um princípio muito em voga: “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.
Têm surgido representantes da “esquerda esclarecida”, com a agulha da bússola sempre afinada para o supremo valor da “justiça social”, que condenam com veemência este padrão distorcido de livre comércio. Argumentam, com razão, que os países pobres são os sacrificados no jogo de interesses em que os mais ricos jogam o seu peso negocial. Denunciam as duas faces que mascaram a falta de decoro dos negociadores dos países mais poderosos, insensíveis à abertura comercial favorável os países mais pobres. Insurgem-se contra o comércio livre que é o paradigma do mainstream político.
Esboçam uma alternativa: o comércio justo. Teorizam em favor dos interesses dos países subdesenvolvidos, dizendo que o comércio livre que nos rege é uma falácia, um caminho de um sentido predestinado a favorecer os países mais ricos. As regras internacionais sobre o comércio são vetustas, indignas por cimentarem um estatuto de desigualdade entre países ricos e países pobres. Acusam este hipócrita regime de livre comércio, por ser o perpetuador das desigualdades. Como o livre comércio amputa o desenvolvimento dos países mais carenciados, propõem a alternativa do comércio justo: os países ricos deviam diluir as barreiras que impõem às exportações dos países pobres, aceitando que estes protegessem os seus mercados contra a invasão de produtos vindos de países ricos. Através do comércio justo, as regras seriam moldadas para criar uma concha protectora em favor dos países mais pobres. Só assim eles podem captar no comércio internacional receitas que alimentam o seu processo de desenvolvimento.
Percebo a intenção da “esquerda esclarecida”. Uma intenção nobre, porque não interessa perpetuar o subdesenvolvimento, pela iniquidade, pela indignidade que supõe. Os governantes dos países mais ricos dão um espectáculo de hipocrisia quando aparecem em público proferindo declarações condoídas sobre a pobreza que vergasta uma parcela considerável do planeta. Como se eles não tivessem responsabilidades por esse estado de coisas.
É aberrante ver o presidente francês soltar palavras de compreensão com os países pobres, lançando um repto aos seus pares do G8 para que se empenhem mais no combate à pobreza mundial. É aberrante, porque a França é uma das maiores aberrações da civilização moderna – seja governada pela vetusta coligação de direitas republicanas que tresandam a bafio, seja governada pelos anacrónicos socialistas. A França é uma das principais culpadas pelo falacioso comércio livre que nos rege. Com o seu proteccionismo que anda de braço dado com um dos traços típicos da idiossincrasia francesa – um chauvinismo singular, imbatível – a França protege os seus agricultores e nega o acesso ao mercado europeu aos agricultores de países pobres, que são mais competitivos. Condenando estes países a vegetarem no sombrio subdesenvolvimento.
O dogma do comércio justo, como é defendido pela esquerda esclarecida, é um equívoco. Denuncia a iniquidade do comércio livre, porque supõe que só pode haver “comércio livre” dentro dos constrangimentos sedimentados pelos países poderosos. Desconhece que este não é um genuíno comércio livre. É um comércio enviesado, condicionado pelos interesses dos países mais ricos. O verdadeiro comércio livre é aquele que destrói todos os obstáculos às trocas comerciais entre os países. É o comércio que deixa falar mais alto a competitividade natural dos países, sem artefactos para perturbar essa competitividade. O comércio que distingue os melhores, não os que têm meios (negociais) para impor soluções artificiais. O comércio livre descomprometido, genuíno, é o verdadeiro comércio justo.
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