Com muito escândalo e alguma candura à mistura, estalou a polémica sobre as centenas de voos clandestinos de aviões dos serviços secretos norte-americanos. Aposto que não é actividade recente. Aposto que estes voos são feitos desde que os serviços secretos dos Estados Unidos existem e sempre que lhes foi possível utilizar aviões – coisa que não é difícil de imaginar, tal a facilidade com que serviços secretos dos grandes países arregimentam recursos.
O choque colectivo tem origem noutra razão: alguns desses voos terão sido usados para transportar prisioneiros de movimentos terroristas islâmicos para Guantánamo, onde os direitos humanos são uma miragem. Soube-se ainda que a CIA mantém presos em calabouços localizados em países de leste. Para aí fizeram voos que transportaram detidos à margem dos elementares direitos humanos. Talvez o ingénuo seja eu, mas esses prisioneiros deviam ser transportados em voos regulares, em companhias de aviação comerciais?
Já por várias vezes mostrei antipatia com o que significam os Estados Unidos para o mundo. Uma embirração que ultrapassa a divisão partidária que domina este país. Não é por o actual presidente ser uma inábil personagem que acentuei a minha repulsa. As acusações que recaem em coro sobre os Estados Unidos de Bush fazem todo o sentido, como o fazem quando os democratas estão no poder. Há uma linha de continuidade na diplomacia que passa de presidente para presidente, que é independente da mudança de cor política. Feito o alerta, digo que às vezes me apetece alistar ao lado dos indefectíveis do americanismo que por aqui se mostram. Porque as excitações anti-americanas são tão irracionais, tão primárias, tão eivadas de parcialidade, que bastam para reprovar os seus fautores e aplaudir Bush e acólitos. Só o não faço por honestidade intelectual, por decoro, para não ferir a coerência.
Vem isto a propósito da parcialidade com que a controvérsia tem sido tratada. Os olhares estão sobre os aviões da CIA que andaram a pousar em aeroportos de países europeus, transportando prisioneiros tratados ao arrepio do direito internacional. A notícia perturbou-me. Mas não me deixo levar pela oportunista ingenuidade, logo aproveitando para flagelar as autoridades desse “grande Satã” do mundo contemporâneo. Condeno essas actividades, já que espezinham os direitos humanos. Deploro as actividades escondidas dos serviços secretos dos Estados Unidos, como o faço em relação a todos os países que possuem serviços secretos que se distinguem por um certo activismo.
Este é o problema de tantos quantos descobriram nos voos clandestinos de aviões a soldo da CIA o novo filão para atacar os Estados Unidos: desconhecem (ou fazem de conta que não conhecem) que outros países têm serviços secretos. E que nenhum é inocente nas práticas que atentam as elementares regras do Estado de direito. Alguém acredita que os serviços secretos franceses, britânicos, alemães, italianos, russos, espanhóis não fazem levantar aviões para missões secretas que envergonham os arautos do Estado de direito, sobrevoando espaço aéreo de outros países que, concedendo autorizações, são cúmplices indirectos desta actividade à margem das regras de direito? Compreendo a tentação para encontrar mais um filão que denuncia as falcatruas dos Estados Unidos. É um meio para ferir a imagem da grande potência aos olhos da opinião pública mundial. Mas quem assim se comporta falha mínimos de imparcialidade: pois ignora – ou enviesa propositadamente – que a arte dos serviços secretos não é um exclusivo dos Estados Unidos.
O problema não é o que a CIA faz ou deixa de fazer. O cerne está na existência de serviços secretos em países que se dizem democráticos. Existirem é a negação das liberdades individuais. Quem se indigna com os tratamentos humilhantes a presos, com o atropelo dos direitos humanos sistematicamente cometidos pelos agentes de serviços secretos tem a razão que lhe assiste por se situar dentro dos cânones do Estado de direito.
Os serviços secretos (de todos os países, há que o enfatizar) estão acima do Estado de direito. Não têm cabimento nas chamadas democracias modernas. Ainda que cada um de nós não esteja envolvido em actividades suspeitas, a simples suspeição pode-nos colocar no ponto de mira da espionagem. Que espiolha, alimenta as intrusões na esfera pessoal. Deixamos então de ser livres dentro do país onde vivemos, porque em nome da pretensa defesa nacional as intrusões à vida pessoal sucedem-se, as agressões aos direitos humanos têm lugar na actividade de serviços secretos. Este é o verdadeiro problema. Olhar para os voos clandestinos da CIA, apenas um fait divert descoberto pelos devotos do anti-americanismo. Que nada resolve do problemático universo dos serviços secretos que deambulam, mundo fora, que nem sombras que se despedaçam sobre as vítimas assim que finda o cerco.
Sem comentários:
Enviar um comentário