22.12.05

Natal mercantilista

Estranha coligação: católicos e profundamente ateus, em uníssono, na denúncia do adulterado espírito do natal. Sublevam-se contra a transformação do espírito natalício num acto de consumismo desregrado. Os interesses que os motivam diferem, contudo.

Os católicos, embrenhados no significado do natal, movem-se contra a metamorfose da quadra, transformada num acto contínuo de dar e receber, perdido o rasto às origens religiosas. Estão contra a paganização do natal. Os profundamente ateus protestam contra a mercantilização da quadra, dirigem o olhar noutra direcção. Concentram-se no infernal consumismo, expoente do contagiante capitalismo que nos cerca por todos os lados. Apontam o dedo à materialização das relações humanas, com sinais mais evidentes em épocas onde se fixou a obrigação de trocar presentes. E culpam o capitalismo, as empresas que produzem coisas quantas vezes supérfluas, na busca incessante do lucro. Esse capitalismo nefando, que coloniza as mentes que se abraçam à tentação do consumismo fátuo.

Andam de braço dado, católicos e arautos da alternativa que se desconhece à combatida globalização. E, contudo, a mercantilização do natal é de enaltecer. Enveredar por um caminho que aparenta alguma insensibilidade pelos valores desmaterializados pode parecer um salto em frente num precipício gigantesco – mais uma vez, o precipício do discurso do politicamente correcto. Arrisque-se a homérica tarefa.

Arreigou-se um uso social: natal exige troca de prendas, desde as mais nutridas que delapidam a carteira, às mais simbólicas. Uma lista infindável, um desafio à imaginação, convocada a desfiar as possibilidades que se encaixam no perfil das pessoas presenteadas. Que se chegue à frente a primeira pessoa que não ficaria ofendida acaso estivesse à margem do comércio de prendas natalícias. Esta troca de prendas é uma troca de afectos. Materializados os afectos, decerto, mas a expressão de um sentimento por quem recebe os presentes. O lugar-comum ensina que é a intenção que conta, não o valor, nem a utilidade, do que se oferece. Há muito subjectivismo neste lugar-comum: parece um escudo que defende quem oferece, desvalorizando a reacção de quem recebe.

Para os líricos que sublinham a pureza dos sentimentos, o natal seria feito de actos mais singelos: um afago, uma palavra de ocasião, gestos que enobrecem a pureza das relações humanas. Uma forma de desmaterializar o natal, de diluir a faceta mercantilista que o domina. Suspeito que são minúsculas vírgulas num livro de largas centenas de páginas. Vãos remos contra uma poderosa maré. Motivados por preconceitos ideológicos, vendo no dinheiro a fonte de todos os males, denunciando a corrupção de nós mesmos quando nos deitamos na cama do consumismo. Os costumes mudam com o tempo. O natal de hoje é diferente do natal de antanho.Ver na mercantilização do natal um sintoma da doença geral do mundo contemporâneo é uma visão estreita e interessada. Comandada pelos preconceitos de ideias que promovem a grande teoria da conspiração, como se as empresas que querem vender sempre e mais fossem as forças vivas que empurram os cordeiros consumidores para a negação das pessoas que são.

Ver no consumismo um sinal de destruição das pessoas, pela materialização que delas se apodera, é descrer no livre arbítrio de cada um. Tudo se passa como se as empresas, com a enxurrada de bens de consumo, reduzissem o livre arbítrio a nada. Acreditar nisto é a expressão máxima da mesquinhez. É elevar ao alto a ignorância que vêm à superfície quando a cegueira dos preconceitos não deixa ver nada mais. É ignorar que as empresas que colocam no mercado os malditos bens de consumo não são entidades desfiguradas, são, elas também, compostas por pessoas.

A mercantilização do natal não é coisa de desmerecer. O natal é feito para as pessoas, pelas pessoas. E se acaso estamos possuídos por estes usos sociais, que se saiba que eles foram moldados por pessoas que, ao longo do tempo, afinaram a bússola dos costumes no sentido que agora se conhece. Podem alguns não gostar – ora por homenagem aos dogmas da religião em que crêem, ora dominados pelos preconceitos das ideias que os cegam. Saibam respeitar a autonomia do indivíduo, e decerto compreendem que o natal seja o reinado do consumismo. O segundo acto da paganização natalícia, apenas.

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