21.12.05

Revistas cor-de-rosa: voyeurismo ao contrário

Ao caminhar na rua, o olhar desvia-se para o escaparate de um quiosque. Uma pulsão suicida levou o olhar a cruzar-se com a capa de uma famosa revista cor-de-rosa espanhola. A manchete principal retrata um casal que, suponho, esteja na berra da movida social. Retratam-nos no rescaldo de um romântico passeio a cavalo. Lá está o casal, olhar romântico entrecortado com uma azinheira em pano de fundo, as rédeas dos equídeos ainda na mão, um pôr-do-sol comme il faut.

Tanto se fala da privacidade da vida pessoal, e as revistas cor-de-rosa esmeram-se por destruir o mito pela raiz. São vidas desnudadas, expostas à curiosidade de um público voyeur que desfolha páginas com avidez, em busca do último gossip, para ver as fotografias que imortalizam um acontecimento que tem de tão importante como de fútil. A antropologia das revistas cor-de-rosa daria pano para mangas. Para aquilatar o perfil médio do consumidor do produto, um misto de fábrica de ilusões e de curiosidade em esventrar a vida alheia. Não é de hoje, a vocação coscuvilheira de um povo no feminino.

Para além da necrófaga tentação de vasculhar a vida alheia, intriga-me mais a apetência das personagens do pretenso jet-set para se exporem aos olhos de devassidão dos habitués destas revistas. Gostam de partilhar com o povo as fotografias dos seus casamentos, das suas idílicas luas-de-mel, dos passeios românticos, do nascimento da prole, da festança farta por ocasião das bodas de prata. São momentos que pertencem ao património pessoal, que por norma é partilhado com as pessoas mais chegadas. Para as personagens do pretenso jet-set, esses momentos perdem a sacralidade do pessoal e vêm para a praça pública, a troco de uns cobres que compram a publicitação do que deixou de ser íntimo, ou só por deixarem o umbral do anonimato.

Causa-me espécie como se expõem à mercantilização de momentos marcantes no percurso da vida de cada um. Podem argumentar que são figuras públicas, que o público exige a exposição da sua vida pessoal, nos aspectos mais comezinhos que deviam ficar resguardados na intimidade. Podem dizer que, sendo públicas figuras, carregam às costas a cruz da acrescida responsabilidade perante o público que os venera. Daí ser exigível a partilha das suas vidas, mesmo de alguns aspectos íntimos, com o público sedento de imaginar que através das páginas das revistas cor-de-rosa entra nas vidas destes figurões.

São pretextos para a narcísica tendência de enxamearem o espaço público com retratos seus. Desculpas para embolsarem maquias fabulosas com exclusivos de momentos únicos nas suas vidas. Para mim, apenas uma estranha forma de voyeurismo. Não do voyeurismo banal, que leva pessoas alcoviteiras a fazerem de conta que não têm vida própria, tantas são as energias consumidas na ilusão de que têm uma vida parecida com a vida de conto de fadas destas figuras públicas. As revistas cor-de-rosa são um antro de voyeurismo: dos milhares que as consomem em busca de mais pormenores da vida pública das públicas figuras que preenchem a ilusão do jet-set; mas também voyeurismo de quem expõe a vida pessoal aos olhos de um bando de abutres que se sacia com as histórias das vidas dos outros.

Há um bando de aspirantes ao reconhecimento social (no contexto do pretenso jet-set fétido): têm o momento de glória quando aparecem numa fotografia, nem que seja numa qualquer festa das muitas onde se pavoneiam adulteradas vaidades pessoais e futilidades sem fim. Outros, já alcantilados ao papel de protagonistas do tal jet-set, alimentam as revistas cor-de-rosa e alimentam-se com a sua persistente aparição nas revistas. Não percebem como são os maiores voyeurs da praça, ao oferecem em bandeja as suas vidas desinteressantes à turba que vai, aos magotes, em busca da última história desinteressante. Todos alinham a bitola bem por baixo.

A fobia da exposição pública dos protagonistas, perenes ou ocasionais, do congeminado jet-set tem o seu quê de pornográfico. A indústria está montada para formatar o “pensamento” das massas que consomem as revistas cor-de-rosa com voracidade. Os próceres do jet-set, com a vida devassada com o seu consentimento, são como actores de filmes pornográficos que tudo mostram na sua arte. É um perverso voyeurismo, que vem de dentro para fora, contrariando o que é normal (o voyeur espia a vida alheia). Prefiro a genuinidade da pornografia.

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