7.12.05

A caridade não existe

Saio do carro e vejo um velho a caminhar na minha direcção. Aborda-me, soltando uns vocábulos ao início ininteligíveis. Fiz um esgar de incompreensão. Ele percebeu que tinha que abrandar o ritmo das palavras. Percebi então, por entre um sotaque cerrado, que era madeirense. Vestia uns andrajos, calçado numas sapatilhas gastas que iam bem além do tamanho dos seus pés. Lamuriou-se: deixou a Madeira natal à procura do único familiar que lhe restava, uma filha que sabia viver no continente, não sabia ao certo onde. Lamentou as dificuldades que atravessava e pediu-me uma ajuda para “comer qualquer coisinha”. Da carteira tirei uma moeda de um euro. Caridade a que não estou habituado, devo confessar.

E pensei: teria sido caridade com o pobre homem ali parado à minha frente, ou caridade comigo mesmo? Caridade, ao escutar a história – sei lá se verdadeira – de um homem que mostrava uns olhos marejados, uma pele escurecida e enrugada, as rugas testemunho de uma vida quem sabe demais sofrida? Seria a comoção instantânea, um assomo de generosidade a que, confesso outra vez, não sou sensível? Ou apenas uma generosidade motivada, um impulso vindo de dentro de mim, clamando pela necessária caridade para afastar o fantasma dos remorsos que, sabia, iriam pairar nos momentos a seguir ao previsível “não”?

Continuei a reflexão: existe caridade? Digo, caridade genuína, espontânea, desinteressada? Alguns dirão que não interessa avaliar as intenções de quem se alista no exército que faz caridade. As intenções residem no íntimo de quem está disposto a fazer caridade. É aí que se esgotam. Mais importante é contabilizar os actos de caridade que fazem bem a quem deles está carente. O que conta é o resultado final – a caridade em si – e não o que a motiva.

Discordo do diagnóstico. Os meios percorridos são o mapa tacteado que diz muito da natureza da caridade. Existe a convicção que a caridade é, por natureza, boa. Costuma-se conotar a caridade com um acto desinteressado, uma ilustração do altruísmo. Se alguém é ajudado, se essa pessoa tem acesso a coisas que lhe diminuem a desprotecção da pobreza, o acto de caridade eleva o seu promotor à condição de filantropo, elogiável condição. Quem ajuda merece o aplauso: com o auxílio contribui para que as carências de desprotegidos sejam atenuadas. Uma ajuda a uma vida que se reencontra, ainda que tenuemente, com algum bem-estar.

Fazer bem ao próximo é um acto de altruísmo. Quem assim conclui está preso ao dogma do resultado, da caridade em si. O caminho percorrido até ao acto de caridade é desvalorizado. No mesmo saco são colocados os “genuínos altruístas”, aquelas pessoas de quem se diz estarem desinteressadamente ao serviço dos necessitados, e os outros, os que olham para a caridade como meio de apaziguar as suas próprias consciências. Por um momento, aceito a distinção. Ao olhar para o segundo grupo, questiono-me se há aí verdadeira caridade. Insisto que a caridade está impregnada de altruísmo; remete para uma ajuda desinteressada, para aliviar o sofrimento de quem não foi bafejado pelo merecimento de um destino sorridente.

Quem ajuda para se desfazer de dívidas com a consciência está longe da caridade genuína. Estes são os que ajudam o próximo sabendo que este imperativo é um dever para viverem em paz com a sua consciência. Outros fazem caridade acreditando que é a vereda obrigatória para o prometido descanso celestial que chega quando os olhos se cerram pela última vez. Duvido que haja caridade quando alguém ajuda o próximo como forma de se ajudar a si mesmo. A caridade esgota-se na esfera de quem pratica o acto caridoso. Uma piedade umbiguista – até porque somos educados no pressuposto de que a vida em sociedade exige a manifestação de actos de solidariedade dirigidos aos carenciados.

Também duvido dos que têm o perfil de genuínos altruístas, almas que nasceram para fazer caridade desinteressada. Desconto a possibilidade destas pessoas aquietarem consciências atribuladas pela imagem que transpiram para o exterior: os magnânimos filantropos, desinteressadamente ao serviço da ajuda aos necessitados. Uma espécie de sacerdócio que, em alguns casos, implica sacrifício pessoal (os missionários em África, as pessoas que põem em risco a sua saúde em cenários de vulnerável salubridade). Ainda que pareça cruel, há uma motivação, por esconsa que seja, que coloca estas pessoas na senda da ajuda não totalmente desinteressada.

Talvez esteja a complicar o que não merece complicação. Talvez esteja a dedicar mais atenção aos meios (o que motiva a caridade) em vez de olhar para o resultado (o bem que a caridade faz aos necessitados). Talvez seja. Contra mim falo: nunca consigo perceber onde está a genuína ajuda na caridade que faço. O que me perturba. O impulso para ajudar o próximo vem de dentro para fora, do apaziguamento da consciência individual. E não de fora para dentro, não uma caridade genuína pela convocação da ajuda, de uma generosidade sem interesse.

1 comentário:

Anónimo disse...

A verdadeira caridade vem do prazer em dar e em ajudar o próximo. É quando nos sentimos felizes por poder ajudar e ver que a nossa ajuda faz diferença na vida de outras pessoas.