16.12.05

Lutador

Repousas, com a serenidade que te é permitida no sossego do ventilador. Enquanto o teu corpo luta para vencer mais uma armadilha da doença, a tecnologia dá-te o descanso da respiração assistida. Um descanso merecido, para um guerreiro que tem dobrado batalhas ínvias, numa permanente dialéctica entre a vida e a morte.

Nem sei quantas vezes o ritual passou diante dos teus olhos. Análises ao sangue, exames sem conta, médicos que te olham apenas mais um paciente entre milhares que lhes passam pelas mãos, a agulha espetada na veia que traz o soporífero que te anestesia para mais outra cirurgia. E tu resistes. Continuas a olhar de frente a adversidade que não te tira a placidez. Lutas contra a dor, com a coragem de quem quer sofrer sozinho o sofrimento que te consome.

Uma lição de vida. O paradigma de como a vida tem que ser vivida em todo o seu esplendor, por todos os instantes que são dádivas para quem continua a poder respirar. Será um lugar comum: bem verdade que aprendemos a dar valor às coisas quando elas ameaçam escapar-se por entre os dedos, como vento fugidio que queremos, mas já não podemos, agarrar. É aí, quando uma página se dobra sem poder voltar atrás, que vemos no exemplo dos outros o roteiro que devemos calcorrear nos dias que hão-de vir. De nada vale olhar para o tempo que passou, contar as maleitas que te trouxeram o sofrimento, e aos que te são queridos o desconforto e angústia de te sabermos sofredor. O que interessa é saber que chegaste aqui. Apesar de tudo. És a imagem viva de quem não se deixou derrotar pelas ratoeiras semeadas no caminho.

Às vezes, em momentos de desânimo, penso no que já passaste e pergunto-me se vale a pena tanta desdita, tanta rotina de hospitais, médicos, diagnósticos, esperança que trazemos debaixo da língua como aqueles comprimidos milagrosos que cerceiam a dor lancinante que vem sem se saber de onde. As interrogações dançam de um lado para o outro, com a velocidade vertiginosa de quem quer viver a vida a toda a velocidade, na estúpida maneira de viver de que assim vive, sabendo que por mais depressa viver encurta a hora de deixar a companhia dos vivos. Interrogo-me se compensa tanto lutar contra as contrariedades que a doença espalha. Pelo sofrimento de quem luta, quantas vezes numa luta desigual com destino traçado.

Dúvidas que estalam na boca, amargas, quando o desânimo espreita. Mal contadas resignações de um agnóstico, para quem o único conforto é saber que uma vida prolongada adia as angústias finais que não atingem os que se apoiam na metafísica de uma religião que promete a vida eterna. Um paradoxo. Esses momentos de desconfortável receio são a antítese da homenagem que tu mereces, pela coragem que transmites às pessoas que te são queridas. E se, por vezes, questiono o merecimento da luta que prossegues, pelo sofrimento que tens carregado, é desagravo da lição que nos dás, patriarca lição de vida de quem tanto da vida me ensinou. E continua a ensinar.

Sei que não hás-de levar a mal as minhas incertezas. Não tens culpa de eu ser desalinhado do teu credo. Credo que te alimenta a força, força que faz de ti um resoluto lutador em homenagem suprema ao que de mais belo a condição humana tem – a vida, tão singela, tão complexa, bem incomparável na sua essência suprema. Eu, o único culpado do cepticismo que me dobra, do ateísmo que me mergulha na maior das contradições: recusar uma vida de sofrimento em nome do valor maior, da vida que é o bem mais belo de todos, que devia ser colocado no altar mais elevado por quem é ateu. Ao saber, por ateu ser, que ao encerrar os olhos pela última vez vem a escuridão perene.

Possa-me valer da grande lição que dás, e serei merecedor da vida que me foi agraciada. Não há encómios que cheguem. Em ti vejo o que sei que não conseguiria ser. Nas fraquezas me exauro, na esperança que com a força de vida que contagias algum dia consiga ser massa diferente, e mudar. Para que então as teorias que percorrem o pensamento, e a vida que quero prolongar ao êxtase, possam ser matéria viva da minha existência. Em ti busco essa inspiração, para ser merecedor da bênção que me foi destinada.

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