20.12.05

Desconcertação social

Todos os anos, quando o velho ano definha e se apresta a dar lugar ao novo ano, o folclore das negociações de concertação social. Governo e sindicatos da administração pública, frente a frente, num round condenado ao insucesso. E, todavia, o folclore repete-se. As partes negoceiam aumentos salariais para o ano vindouro. Tão distantes nos pontos de vista, à partida como à chegada.

Todos os anos, a concertação social salda-se pelo desentendimento. Resta o folclore: o governo, independentemente da cor política, na imagem de magnanimidade; os sindicatos de goela aberta, sempre com a certeza de que têm direito a reivindicar aumentos salariais além do razoável, e sempre com a percepção de que tais reivindicações não serão atendidas, arrepiando caminho ao que eles mais gostam de exercitar – os conflitos sociais alimentados pelas greves. Concertação social: um instrumento espúrio, uma fogueira de vaidades onde os protagonistas esfregam o ego de quem aparece perante as câmaras da televisão a fazer de conta, apesar de saberem que as negociações estão votadas ao fracasso logo à partida.

Discutem os parceiros sobre regalias de privilegiados. De uma casta que tem vantagens acima da média, ainda por cima sem se fazerem merecedores de tais privilégios. Quem quer um prémio sabe que tem de batalhar por ele, quantas vezes arduamente. Os funcionários públicos são uma casta à parte. Garantem-se-lhes todas as regalias pensáveis e impensáveis, porque só existem direitos e raramente deveres. Um caminho que só se faz andando para a frente, já que nisto dos direitos adquiridos convencionou-se que o caminho não tem retrocesso. Com o resultado que se conhece: a função pública não pede meças à produtividade; e campeia a mediocridade, com prejuízo para os utentes.

É nestas alturas que a azia investe, furiosa, no meu estômago. Quando vejo sindicalistas que dão pelo nome de Trindade ou Picanço esgadanharem teorias sinuosas que pretendem mostrar o indemonstrável, com a sagacidade de quem vende banha da cobra a um bando de acéfalos – todos nós. Questione-se outro direito adquirido: a dispensa de serviço dos senhores e senhoras sindicalistas, pois sendo (supostamente) representantes dos trabalhadores dedicam-se a cem por cento a essa tarefa. Não exercem outra função senão sindicalizar. Têm garantido o seu posto de trabalho, acaso algum dia regressem à odiosa lufa-lufa diária dos seus representados (coisa improvável, a constatar pela reiteração das caras que aparecem, ano após ano, como porta-vozes sindicais). São pagos para terem uma vida regalada. Por nós, oprimidos contribuintes.

Quando os ouço a falar com a persuasão de quem tem certezas inquebrantáveis, e quando me recordo de episódios vividos em serviços públicos, a primeira coisa que me ocorre é fazer uma colecta para pagar a reforma dourada, bem longe daqui, a estes lídimos representantes do parasitismo. Haverá ainda tempo para mudar mentalidades, para convencer descrentes que é o mérito que deve ser premiado – e não as virtudes estáticas das “conquistas de Abril”, dos direitos adquiridos que não podem ser beliscados mesmo que haja razões para isso?

Dou um exemplo de como os funcionários públicos não merecem ser compensados pela bitola que o governo alinhava (quanto mais pela delirante bitola dos sindicatos). Da última vez que tive o incómodo de me deslocar a uma repartição de finanças – bendita Internet que nos poupa milhentas idas às finanças! – assisti à habitual indiferença de quem se acha convencido que está ali para ser servido pelos utentes, não o contrário. Fui às finanças com um objectivo cristalino e nada burocrático: pedir uma declaração para entregar na segurança social, que por sua vez iria emitir uma declaração para depois entregar nas finanças…

Tirei a senha. Estavam sete pessoas à minha frente. No balcão do IRS, duas funcionárias iam atendendo, com um indisfarçável esgar de sacrifício, os contribuintes que apareciam pela frente. Terá chegado a hora da interrupção matinal. Uma das funcionárias virou costas e alou para o café. Pouco importava que estivessem quase dez pessoas em espera. Elas que esperassem: a pausa matinal era prioritária. Só regressou ao trabalho meia hora mais tarde.

Que ninguém ouse questionar o inalienável direito da funcionária pública à pausa a meio da manhã, pois trata-se de um direito adquirido. Que tem mais força que a qualidade do serviço que se espera que aquela senhora, e os seus colegas, prestem a contribuintes confrontados com a inevitabilidade da deslocação às finanças. A isto chama-se negação da produtividade, incúria, desrespeito pelo utente. Casos destes merecem aumentos salariais zero, na melhor das hipóteses. E mostram como a teimosia na concertação social é desconcertante.

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