5.12.05

Se fumas não podes trabalhar na OMS

A Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu dar o exemplo. Furtar-se ao adágio popular “em casa de ferreiro, espeto de pau”. Como uma das lutas da OMS é o combate ao tabagismo, a organização mudou as regras, ambientou-se ao fascismo higiénico de que, aliás, é uma das percursoras. Para não andar de mão dada com a incoerência, proibiu o recrutamento de trabalhadores que confessem o tenebroso vício do tabagismo.

Faltam outros pormenores deliciosos. Saber se os que já lá trabalham podem ser fumadores, apenas sendo vedado o relapso vício aos neófitos trabalhadores da OMS. Que já devia vigorar a proibição de fumar nas instalações da OMS não é novidade. Noutras organizações acontece o mesmo. Até as tenebrosas empresas multinacionais, esses antros que promovem a delapidação dos recursos ambientais, embarcaram na proibição do tabaco dentro das suas instalações. O que falta saber – outro pormenor delicioso não contado – é se os novos técnicos admitidos na OMS estão absolutamente proibidos de fumar, mesmo no recato dos seus lares.

A notícia foi dada de forma lapidar: quem se candidatar a um cargo da OMS sabe de antemão que não pode ser fumador. Adivinha-se, no preenchimento do formulário da candidatura, um quadro bem destacado onde se inquire o candidato: “é fumador”? Para que não restem dúvidas, na entrevista que pode franquear as portas de tão prestigiada organização internacional ao candidato, um júri (de possíveis fumadores) interroga-o sobre os hábitos de fumo. Quem for fumador e quiser homenagear a verdade, não pode apresentar candidatura. Essa pessoa perde o lugar para outro, porventura menos habilitado para o lugar, por ter o incorrigível vício do tabaco.

Pode até dar-se o caso desta iluminada medida ser um convite à generalização da mentira. Técnicos com perfil para ocupar cargos na OMS podem faltar à verdade, ocultando o seu tabagismo militante. Não se acredita que a OMS ponha detectives na senda dos novos trabalhadores, para tirar a limpo se há verdade ou mentira na resposta à crucial pergunta sobre hábitos tabagistas. Puxando o lustro à imaginação, quem sabe se esta medida não instala um clima de coacção psicológica, com os trabalhadores da OMS a vigiar-se reciprocamente, fora do trabalho, nas horas dedicadas ao lazer. Quem sabe se denúncias de compulsivos fumadores que esconderam o pecado levarão a demissões com justa causa, por se furtarem ao padrão comportamental exigível para exercer funções na OMS.

Vivemos num lugar estranho. Acentua-se a volatilidade da fronteira entre a vida pessoal – que se diz ser inexpugnável – e os critérios que admitem o despedimento de um trabalhador, por desrespeito de normas que impõem comportamentos. A medida inovadora da OMS é uma discriminação sem fundamento, intolerável. E quando são organizações internacionais, arvorando a si uma reputação acima de qualquer suspeita, a atalhar caminho para discriminações baseadas em comportamentos pessoais, que moralidade lhes resta quando aparecem como campeãs da não discriminação de certas minorias (religiosas, étnicas, raciais, homossexuais, etc.)?

Está aberto um precedente perigoso. Daqui para diante, organizações do género e empresas podem vasculhar os hábitos pessoais de quem empregam. A vida pessoal, que não entra nas instalações do local de trabalho, passa a ser escrutinada pelos empregadores. Qualquer dia, o interrogatório censório alarga-se a outros domínios. Outro tipo de perguntas que interferem na vida pessoal dos candidatos à própria OMS pode ser feito: frequenta bordeis? Se a resposta for sim, portas fechadas (a OMS também combate a sida); frequenta o McDonalds e outros esteios do fast food? Em caso de resposta afirmativa, portas fechadas (a OMS zela pelos bons hábitos alimentares, combatendo a propagação de colesterol).

Estamos cada vez mais no limiar da profecia de George Orwell, quando empregou no seu “1984” a figura do “Big Brother” (is watching you). Que seja uma organização internacional a arrepiar caminho não é surpreendente. É aí que se acoitam burocratas habituados a prestar serviço na administração pública dos respectivos países. São eles que se consideram o escol de engenheiros sociais especialmente habilitados a formatar a sociedade – como se ela fosse formatável de acordo com os seus dotes de prestidigitação. Preocupante será se, doravante, empresas copiarem o mau exemplo das organizações internacionais. Deixaremos de ter vida pessoal, na destruição da fronteira entre hábitos pessoais e comportamentos intoleráveis para exercer uma profissão?

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