14.12.05

Brincar com coisas sérias: uma comédia sobre a “tentativa de agressão” ao patriarca da república

Grandes parangonas: um indigno cidadão da gesta de democratas lusitanos ousou ameaçar o grande patriarca da república. A faena começou com impropérios captados pelas câmaras de televisão e microfones, como se sabe ávidos de notícias ensanguentadas pela polémica. O “atrasado mental” (foi com esta candura que o patriarca o alcunhou) protestava contra a descolonização. Apontava o dedo à figura que quer exercer o terceiro mandato presidencial. Ignorou, porque a “demência” lhe terá roubado discernimento, que a descolonização foi exemplar. Está assinado por decreto, que elevou esta asserção à qualidade de verdade inquestionável.

O patriarca não está habituado a ser contrariado em público. Não aceita que adversários políticos o façam, menos ainda a arraia-miúda que destas coisas de política deve ser chamada a depositar o seu voto – de preferência no clã protegido pelo patriarca – e regressar aos casulos para ser magnificamente governada. Como está desabituado da confrontação, quis ripostar. O “atrasado mental” ia-se deitando às guarnecidas bochechas do patriarca da república. Estalou um escândalo nacional. Se todas as agressões são condenáveis, mais o são as tentativas de agressão a excelsos membros da casta política. Acaso a agressão tentada tivesse como destinatário a geriátrica figura que quer acampar em Belém, pouco faltaria para decretar o estado de sítio e o luto nacional por antecipação.

Alguém reparou na largueza da segurança pessoal do “pai da democracia”? Estranho sintoma: quando um indisfarçável cordão de segurança rodeia as figuras gradas a quem o país tanto deve (versão oficial) em ajuntamentos populares, o patriarca deambulava pelas ruas barcelenses sem gorilas por perto. Aqui vai um contributo para a teoria da conspiração: não estaria montada a encenação? Não circulava pela cidade a informação de que um antigo combatente, sofrendo de stress pós-traumático (chagas abertas da já longínqua guerra colonial), jurara infernizar a visita do suserano pela terra minhota? Os maquilhadores de imagem do candidato terão percebido a jazida diante dos seus olhos: a lembrança de como o guru capitalizou politicamente os efeitos de uma agressão na Marinha Grande, andava então a desgovernar Portugal como primeiro-ministro.

Com políticos, estou sempre de pé atrás. Serei desconfiado por sistema, mas prefiro este rótulo a encarnar nos eternos ingénuos que acreditam na bondade e na espontaneidade dos políticos – sobretudo em campanha eleitoral, onde nada, mesmo nada, é orquestrado ao mais ínfimo milímetro, como se sabe.

Porventura o rei da república gosta de sentir o calor de umas traulitadas populares. Para enriquecer o seu avantajado curriculum cénico. Afinal, que outro político se pode gabar de ter sentido a quentura das mãos do povo? Nenhum dos outros candidatos tem tamanho estofo curricular. Ora, isto prova como o candidato oficial do partido do governo é o que merece o voto de todos os eleitores. Ele, mais do que qualquer outro, sabe o que é a convivência com o povo, diria, uma intimidade cheia de adrenalina. Numa democracia a sério, era motivo suficiente para excluir os demais candidatos, se ficasse sumariamente provado que eles não tinham jamais passado pelo crivo da bastonada, do pontapé, do soco, da estalada, ou dos ovos podres arrojados por eméritos representantes do povo mais rasteiro.

A imprensa, sedenta de escândalos fáceis, disparou: o patriarca tinha sido “insultado”, tinha havido “tentativa de agressão”. Eu, deliciado com as imagens que fizeram manchete, não testemunhei isso. O rei da república ouviu das boas, com o desagradável ferrete da voz alterada do “atrasado mental”. Num país onde há liberdade de expressão, não pode um eleitor confrontar as sumidades que se candidatam com umas desconfortáveis interpelações? Também não percebi onde estava a tentativa de agressão: o patriarca andou sempre à distância que o punha a coberto das mãos nervosas do “atrasado mental”. É verdade que esboçou um tabefe na geriátrica figura, mas nem sequer a mão teve tempo para baixar, tal a rapidez da reacção dos gorilas aí já presentes (a coisa tinha aquecido, entretanto) e a retirada estratégica e acelerada do campeão da tolerância nacional.

Pude então ouvir indignados apoiantes do candidato a soltarem o inevitável “fascista” para o homem que tinha estragado o banho popular nas ruas de Barcelos. Ora aqui a perplexidade sobe de tom: afinal, quem insultou quem?

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