A teimosia dos planificadores sociais, que continuam a acreditar que os problemas (muitas vezes por eles inventados) se resolvem à força de quotas impostas por decreto. Desta vez, os eméritos socialistas no poder lembraram-se de obrigar as estações de rádio a passar um mínimo de 25% de “música portuguesa”.
A expressão aparece grafada de propósito. Por um lado, ao ouvir e ler músicos de todo o mundo a reivindicar o espírito universal da linguagem musical, parece contraditório falar em “música portuguesa”. (Claro que alguns espécimes da indústria musical não se cansam de reclamar um estatuto privilegiado para a chamada “música portuguesa”, ou não fossem eles os principais favorecidos desse proteccionismo saloio. Vicissitudes do mercado que se lhes escapa entre os dedos: ou a ocasião para estender a mão a clamar protecção das autoridades.) Por outro lado, perante os irremissíveis os ventos da globalização é uma tontice reservar por lei uma coutada à dita “música portuguesa”.
Quando vejo o rótulo de “música portuguesa” usado com esta leviandade, as perplexidades saltam em catadupa. O que é a “música portuguesa”? Resume-se ao acto criativo de quem musica uma composição e escreve a respectiva letra? E, nessa hipótese, como qualificamos a nacionalidade de uma música se, no acto criativo, estiveram presentes artistas portugueses e de outros países? Qual o limiar de intervenção criativa para se considerar que a música é “portuguesa”?
Podemos ir mais longe nas dúvidas de qualificação. Se aceitarmos que a música não se resume à intervenção intelectual dos seus criadores, valendo também os contributos de técnicos de som, produtores, etc., a complexidade acentua-se. São inúmeros os exemplos de músicos nacionais que criam em Portugal e gravam em estúdios localizados no estrangeiro, com o auxílio de uma equipa de técnicos de outras nacionalidades. Também se pode falar de “música portuguesa”, passando por cima das contribuições importantes de todos os técnicos e do facto da gravação ter sido feita em estúdios estrangeiros?
A ditirâmbica medida dos planeadores socialistas esbarra no problema das quotas: como se justificam? Porquê 25%, e não apenas 20%, ou uma fasquia mais ambiciosa de 40%, decerto ao gosto do alegre candidato presidencial que mais fala em patriotismo? A explicação é linear: discricionariedade dos dirigentes. Não há critérios objectivos quando se definem quotas – seja nos mínimos da “música portuguesa” que as rádios devem passar, seja nas quotas que tentam forjar a igualdade de sexos. É uma questão de humores do momento. Alguém no governo terá sido sensível às pressões do lobby da “música portuguesa”. Cedeu à pretensão de fixar um mínimo para a “música portuguesa” que ressoa no éter. No dia em que o engenheiro social de serviço tomou a decisão, teve que escolher um número. Vinte e cinco por cento. Como podia ter sido outro número qualquer, que a subjectividade da escolha sempre seria o diapasão.
Fiquei sem perceber a intenção da quota: apenas um bacoco proteccionismo à indústria discográfica lusitana? Ou vai mais longe, procurando educar o rebanho que escuta as ondas radiofónicas, levando-o a comprar mais “música portuguesa”? Se este é o propósito, duvido que seja atingido. Por mais que os socialistas que conduzem a nau esbracejem com medidas inusitadas do tipo, por mais que tentem remar contra os ventos da globalização (musical), a aspiração está votada ao fracasso.
Estes planificadores sociais, sempre de régua e esquadro na mão, moldando os detalhes do que sabem ser a sociedade perfeita, não se cansam de trabalhar em prol do colectivo. São uns filantropos, eles que podiam usar as suas capacidades intelectuais acima da média noutros domínios. Como é tão meritória a sua entrega à causa pública, deixo aqui uma sugestão para que a eficácia da medida em discussão seja maior. Faça-se um controlo apertado das compras de música dos cidadãos nacionais. Imponha-se a mesma bitola: que os portugueses sejam obrigados a comprar pelo menos 25% de “música portuguesa”, ou os seus impostos serão agravados no final do ano. Um rebanho tem que ser conduzido pelo caminho certo. Que, há que o relembrar, é sempre vigiado pelos cães de guarda, perdão, pelos incansáveis dirigentes que planeiam as coordenadas de uma sociedade perfeita.
Só há uma coisa que me causa espécie: se o ser humano é tão imperfeito, como pode a sociedade humana aspirar à perfeição?
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