23.12.05

O natal contado às criancinhas (versão surrealista)

- Asking for permission to take off, diz a voz cavernosa do pai natal.

- OK. Details on your flight conditions?, é retorquido da torre de controlo.

- Animals’ wings checked. All things right, informa o pai natal, olhando para o relógio com o receio de se atrasar.

- Clear to take off. Have a nice journey! Hope children get happy with gifts delivered!, deseja o controlador aéreo.

As renas fazem-se à pista, tomando lanço para uma descolagem de sucesso. O lastro é muito, tantas as prendas arrumadas no porão do trenó. O capitão, vestido de pai natal, verifica as condições atmosféricas. À sua frente uma nuvem plúmbea faz desconfiar de tormenta a evitar. Confirma os dados no radar: ventos fortes e gelo no interior da nuvem aconselham a contorná-la. Não vá dar-se o caso das crianças alvejadas por este trenó ficarem desconsoladas se ele não fosse aspergindo a felicidade nas casas que o roteiro prevê visitar.

Pelo caminho, as renas cruzam-se com cegonhas que trazem no bico nascituros quase a ser depositados no berço, junto aos seus progenitores. Dupla prenda natalícia. O espaço aéreo está sobrelotado: dá-se a coincidência desta noite ter um inusitado tráfego de cegonhas, com destino marcado para África e Ásia, pouco para a Europa tão carenciada de bebés.

O franchising do pai natal pôs este ano no ar quase 230.000 trenós. Foi difícil arranjar tanto pai natal disposto a prescindir do conforto da ceia natalícia para espalhar a felicidade pelos lares que esperam, com ânsia, as prendas prometidas. As condições de trabalho vão piorando: a empresa que ganhou o concurso público para o franchising está em contenção de custos. Já não há actualização de honorários há três anos. O sindicato dos pais natal ameaçou fazer greve, mas à última da hora imperou o bom senso. O sindicato anuiu que não podia sacrificar as crianças, inocentes apanhados no meio do vendaval entre a empresa e os timoneiros dos trenós carregados de embrulhos.

As renas deste ano são de uma excelente colheita. Os treinos deixaram a promessa de uma tarefa esmerada, diligente, rápida e eficiente. Foram alimentadas com os melhores nutrientes, aconchegadas em estábulos de primeira qualidade, tiveram tratamento requintado. Mal sabem que na voragem natalícia de todos os anos, estreiam-se e logo a seguir são encaminhadas para a viagem final, destino matadouro. Estão prometidas para os restaurantes e lares nórdicos, em estufados servidos com molho de frutos silvestres e creme de natas azedas. A colheita das renas que puxaram trenós é sempre a mais desejada. A viagem pelos ares gélidos amacia a carne.

(Para que tudo corra bem no idílico cenário de natal, espera-se que uma criancinha precoce não levante interrogação pertinente: “papá, como é que as renas voam se não têm asas?!”)

Descobriu-se que o pai natal é a encarnação de Karl Marx, uma conspícua lucubração para minar o capitalismo por dentro. Ou será Marx um agente infiltrado para convencer os detractores do capitalismo da alternativa por ele idealizada, quando, afinal, sendo a personificação do pai natal, se vem a concluir que Marx era um expoente do malfadado capitalismo? Na dúvida, a barbuda figura não é aconselhável a quem tanto desconfia de Marx como ícone de uma ideologia abortada – uma ideologia que, na cabeça do líder do CDS-PP, é a fonte do terrorismo que nos inquieta (como se mais inquietantes não fossem as teorias absurdas do apatetado líder político).

Este ano espera-se que as renas não encontrem detritos no espaço aéreo. No ano passado o lixo aéreo teve uma intensidade anormal, coincidindo com a noite de 24 de Dezembro. Muitas renas tropeçaram nos resíduos que enxameavam os corredores aéreos, com muitas unhas encravadas que obrigaram a escalas técnicas inesperadas em aeroportos intermédios. Espera-se que o ar esteja mais límpido, para as demoras do ano passado, que tantas angústias semearam entre os irrequietos petizes, não se repitam.

O franchising de natal cuida de todos os pormenores para que a tarefa seja bem sucedida. As renas foram instruídas para não se assustarem com o cenário dantesco e contra-natura que pode, com grande probabilidade, preencher as ruas de uma grande cidade do norte de Portugal. Os pais natal dos indefectíveis adeptos do clube mais representativo da região trajam de azul. O vermelho é cor diabólica, vestida pelos arqui-rivais que os fervorosos adeptos azuis e brancos querem ver “a arder”. Nem o pai natal escapa à cegueira. Por aquelas terras traveste-se de azul e branco.

Ora isto que causa engulhos a Karl Marx, que afinal ainda não morreu, como se comprova pela reincarnação na pagã figura natalícia. Marx, vermelho, comunismo, pai natal vestido de vermelho. Suspeito que esta história do pai natal, até pela carga pagã que subverte o significado religioso da quadra, é uma conspiração comunista para nos convencer, desde a tenra idade, que Marx tinha razão no seu retrato do mundo. Cuidado com o natal!

1 comentário:

Anónimo disse...

Parabéns!
Este texto é a tua cara!
Bem escrito, inteligente, com humor, sofisticado, a insunuar umas coisas e a querer dizer outras, com alguns traumas político/económicos, corrosivo (no bom sentido) e imaginativo.
Só faltou a referência ao Louçã... e tinha sido perfeito (ele tinha ficado bem como líder sindical dos Pais Natal).
Uma sugestão de Natal:
Escreve também um conto que possas ler à tua filha.

Bom Natal!
Ponte Vasco da Gama