1.12.05

Greve ao lixo, ou uma greve de lixo?



Parece que estamos no terceiro mundo. Um passeio pelas ruas da cidade, a imundície que entra pelos olhos. Hoje é quinta-feira e esta semana ainda não houve recolha de lixo. Os trabalhadores exercem o seu “legítimo direito de greve”, protestando contra a retirada de um subsídio qualquer a que estavam acostumados. Quando se mexe nos “direitos adquiridos” comete-se um atentado execrável à classe dos oprimidos. Uma espécie de terrorismo: as vítimas são os titulares dos direitos adquiridos e no papel de talibãs (do capital) aparece “o patronato”.

Depois de três noites sem recolha, amontoa-se o lixo nos contentores que rebentam pelas costuras. A sua capacidade esgotou-se há dias. E como as pessoas se recusam a armazenar lixo fétido em casa – supõe-se que ninguém lhes pode negar esse também legítimo direito, por imperativos de salubridade – o panorama é digno de uma cidade de um pobre país africano. Dá-se o caso da greve ter coincidido com uma época do ano em que já faz frio. De outro modo, à espurcícia juntar-se-ia um enxame de moscas com um cortejo de doenças a espreitar, ameaçador.

Já não é a primeira vez que escrevo contra greves. Mais uma vez, o rótulo de “reaccionário” será colado à minha lapela, ao denunciar a ignomínia de greves deste tipo. Hoje aceita-se que a greve é uma “arma legítima da luta dos trabalhadores”. O princípio entrou na moldura dos lugares comuns que cansam ouvidos e olhos. Apetece dissecar ao milímetro a retórica, na tanatologia da frenética actividade sindical que parasita a sociedade.

Há duas expressões que cimentam perplexidade: “arma legítima” e “luta dos trabalhadores”. Na primeira é visível a carga bélica. Usa-se uma arma como meio de defesa, poderão os condescendentes contrapor. Direi: neste caso, usam a arma da greve como meio de pressão, um instrumento para condicionar os que têm o poder de decisão e se recusam a fazer a vontade aos grevistas. Depois, “luta dos trabalhadores”. Empregar a palavra luta reforça a ideia de que o pessoal dos sindicatos gosta de se envolver em conflitos, de exacerbar posições, usando meios que perpassam a veia bélica. Por cá, é sabida a conotação da luta: um instrumento de vociferação política, sendo os sindicatos instrumentalizados pela estratégia de partidos.

Para um pacifista convicto, atitudes destas são inaceitáveis. Num exercício mais cuidado, até se encontram motivos para inverter os papéis de terrorista e de vítima. Afinal os sindicatos aparecem nas vestes de terrorista, e as vítimas são os inocentes que se vêm privados de serviços fundamentais – recolha de lixo, transportes públicos, justiça, serviços de saúde, etc. Os sindicatos endossam a responsabilidade, alegam que a culpa é de quem tem o poder de decisão nas mãos e se recusa a aceitar as reivindicações dos trabalhadores. As reivindicações são sempre justas. Ai de quem tente mostrar que elas são desproporcionadas, que leva logo com o rótulo de fascista para acabar com a conversa em duas penadas.

A ideia enraizada dos direitos adquiridos dos trabalhadores é uma falácia. Ignora que o mundo avança, as circunstâncias se alteram e que ficar agarrado a dogmas é meio caminho andado para entrar nos alvores do anacronismo. O que ainda vale a estes funcionários públicos é que exercem uma actividade protegida por monopólio. Estivessem essas funções abertas à concorrência e decerto teriam algum pudor, porque saberiam então que a pesporrência que os distingue teria um elevado preço a pagar – quem sabe, o desaparecimento dos seus postos de trabalho.

Ignoro quando vai terminar esta greve iníqua. Li algures que o sindicato dos lixeiros se comprometeu a cumprir serviços mínimos. Entre eles, a obrigação de recolher lixo naqueles locais onde ele extravasasse a capacidade dos contentores. O compromisso não foi respeitado. Basta andar pelas ruas da cidade e ver como estão enxameadas de lixo. Ninguém pede responsabilidades ao sindicato que não cumpriu o prometido? Talvez não. E sem surpresa: se campeia a ideia de que só temos direitos, que os deveres são para os outros, nunca para quem reclama o gozo de direitos.

O que é mais intrigante é que raras vezes as greves atingem os seus propósitos. Os grevistas do lixo reclamam contra a perda de um subsídio. Passada a greve, aposto que vão perder o subsídio e o assunto vai assentar na poeira do tempo. No final, como tantas vezes, uma greve inútil: os trabalhadores não conseguiram o que queriam; e os incómodos causados a inocentes cidadãos não podem ser restaurados. Esta greve ao lixo é um lixo de greve.

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