Quando o fim da tarde vem beijar a noite, o sol na trajectória descendente. Mergulha no abismo da noite, mas antes entrega-se a um lento bailado de cores e formas que se transformam com os minutos que agora demoram. Lá ao longe, o Tejo assiste ao radioso sol que se despede, que perde a sua radiosa forma de ser. Fornece-lhe o leito onde cintilantes os raios encontram ocaso, se fundem com as águas vagarosas do rio espraiado.
Há um bucólico retrato campestre como pano de fundo. As ovelhas andam de cabeça baixa, farejando a relva que mordiscam com os seus pequenos dentes. Liberdade cerceada pelas vigas que encestam as sebes. Dir-se-ia que o exíguo espaço lhes basta para passearem ledice. A chuva fértil do último Inverno criou uma erva viçosa, farto alimento na ruminante mastigação dos bichos. Diante dos meus olhos, a planura esverdeada estende-se no firmamento. Até se fundir num horizonte que se perde de vista, já as águas do Tejo vieram roubar espaço à planície verde que se entrecorta com o casario disperso.
O fim da tarde veio com o sonoro chilrear da passarada. Os sons contínuos dos pássaros que não se vêem, só se ouvem. Preparam-se para a alvorada da noite, chilreando na demanda dos seus ninhos refúgio da escuridão reinante. Nas copas das árvores, são espectadores da fusão do Tejo com o sol que se aninha. Deleitados, observam o astro que engrossa no dia que se despede. Há algo de dilacerante no sol que perde o rasto no Tejo. Engrossa e transfigura-se, resiste à despedida do dia. Eivado de protagonismo, clama pela atenção dos passeantes que são levados na contemplação do ritual. Aumenta de tamanho, deixando a recordação do dia que há-de vir, ensolarado como as almas cansadas da invernia querem que seja.
No restolho do longo Inverno, os restos de uma embaciada e ruminante existência. Dias a fio de nuvens cinzentas, pesadas, plúmbeas, pairando sobre as cabeças. Pesando nas cabeças. Entristecendo as almas que maquinalmente saem de casa na rotina diária. Corpos tingidos pela humidade entranhada nos duros ossos que parecem quebrar-se. Ou o vento que despenteia senhoras e desfaz o tempo deitado ao penteado, o mesmo vento que estraga os guarda-chuvas que deixam de proteger da chuva inclemente que cai, ainda o vento que levanta as gravatas dos executivos numa dança desenfreada mesmo à frente dos seus olhos. O sol primaveril é o anúncio das recordações invernais que ficam acomodadas na memória recente, sem que a memória a elas queira regressar.
É o sol, o sol que se funde com o Tejo, a renovação da temperança. E se há mistério indecifrável na nutrição indelével do sol que rompeu a temporada invernal, diante dos meus olhos um teatro magnífico: o sol que mergulha no Tejo, Tejo prateado ao servir de leito aos raios do sol que se deitam no espelho de água que embevecido fita o casario branco de Lisboa. Há quadros que apetece emoldurar na perenidade das memórias. Obras de arte, não, obras-primas que silvam os ecos da luminosa estação primaveril que acaricia gelificadas pessoas já cansadas do longo, tardio Inverno. Momentos escassos que merecem imortalidade. São eles que trazem o deleite das incomensuráveis gratificações da alma.
E contudo perderiam sentido se intemporal fosse a contemplação da obra-prima. Enquanto a vista se perde, planície fora, na ténue linha onde o sol se funde com o casario longínquo e disforme, na bênção do majestoso Tejo, é como se os ponteiros do relógio parassem a sua marcha. Tudo pára em volta. Menos o chilrear dos bandos de pássaros escondidos nas ramagens das árvores, e o sol que se engrossa e enrubesce.
E quando o sol se perde do lado de lá do fio do horizonte, só deixa uns traços nas finas nuvens que se tingiram de vermelho. É então que o refrigério está preparado para a noite que limita a luminosa luz do dia. Os ponteiros do relógio, de repente, voltaram à sua furiosa cavalgada. Aquietada a existência, com o bucolismo que a retina captou.
(Alcochete)