31.3.06

O sol e o Tejo, excertos de uma coreografia

Quando o fim da tarde vem beijar a noite, o sol na trajectória descendente. Mergulha no abismo da noite, mas antes entrega-se a um lento bailado de cores e formas que se transformam com os minutos que agora demoram. Lá ao longe, o Tejo assiste ao radioso sol que se despede, que perde a sua radiosa forma de ser. Fornece-lhe o leito onde cintilantes os raios encontram ocaso, se fundem com as águas vagarosas do rio espraiado.

Há um bucólico retrato campestre como pano de fundo. As ovelhas andam de cabeça baixa, farejando a relva que mordiscam com os seus pequenos dentes. Liberdade cerceada pelas vigas que encestam as sebes. Dir-se-ia que o exíguo espaço lhes basta para passearem ledice. A chuva fértil do último Inverno criou uma erva viçosa, farto alimento na ruminante mastigação dos bichos. Diante dos meus olhos, a planura esverdeada estende-se no firmamento. Até se fundir num horizonte que se perde de vista, já as águas do Tejo vieram roubar espaço à planície verde que se entrecorta com o casario disperso.

O fim da tarde veio com o sonoro chilrear da passarada. Os sons contínuos dos pássaros que não se vêem, só se ouvem. Preparam-se para a alvorada da noite, chilreando na demanda dos seus ninhos refúgio da escuridão reinante. Nas copas das árvores, são espectadores da fusão do Tejo com o sol que se aninha. Deleitados, observam o astro que engrossa no dia que se despede. Há algo de dilacerante no sol que perde o rasto no Tejo. Engrossa e transfigura-se, resiste à despedida do dia. Eivado de protagonismo, clama pela atenção dos passeantes que são levados na contemplação do ritual. Aumenta de tamanho, deixando a recordação do dia que há-de vir, ensolarado como as almas cansadas da invernia querem que seja.

No restolho do longo Inverno, os restos de uma embaciada e ruminante existência. Dias a fio de nuvens cinzentas, pesadas, plúmbeas, pairando sobre as cabeças. Pesando nas cabeças. Entristecendo as almas que maquinalmente saem de casa na rotina diária. Corpos tingidos pela humidade entranhada nos duros ossos que parecem quebrar-se. Ou o vento que despenteia senhoras e desfaz o tempo deitado ao penteado, o mesmo vento que estraga os guarda-chuvas que deixam de proteger da chuva inclemente que cai, ainda o vento que levanta as gravatas dos executivos numa dança desenfreada mesmo à frente dos seus olhos. O sol primaveril é o anúncio das recordações invernais que ficam acomodadas na memória recente, sem que a memória a elas queira regressar.

É o sol, o sol que se funde com o Tejo, a renovação da temperança. E se há mistério indecifrável na nutrição indelével do sol que rompeu a temporada invernal, diante dos meus olhos um teatro magnífico: o sol que mergulha no Tejo, Tejo prateado ao servir de leito aos raios do sol que se deitam no espelho de água que embevecido fita o casario branco de Lisboa. Há quadros que apetece emoldurar na perenidade das memórias. Obras de arte, não, obras-primas que silvam os ecos da luminosa estação primaveril que acaricia gelificadas pessoas já cansadas do longo, tardio Inverno. Momentos escassos que merecem imortalidade. São eles que trazem o deleite das incomensuráveis gratificações da alma.

E contudo perderiam sentido se intemporal fosse a contemplação da obra-prima. Enquanto a vista se perde, planície fora, na ténue linha onde o sol se funde com o casario longínquo e disforme, na bênção do majestoso Tejo, é como se os ponteiros do relógio parassem a sua marcha. Tudo pára em volta. Menos o chilrear dos bandos de pássaros escondidos nas ramagens das árvores, e o sol que se engrossa e enrubesce.

E quando o sol se perde do lado de lá do fio do horizonte, só deixa uns traços nas finas nuvens que se tingiram de vermelho. É então que o refrigério está preparado para a noite que limita a luminosa luz do dia. Os ponteiros do relógio, de repente, voltaram à sua furiosa cavalgada. Aquietada a existência, com o bucolismo que a retina captou.

(Alcochete)

30.3.06

A verdade, cada um acredita na sua (a bondade dos sindicatos)

Perez Metello é uma espécie de Luís Delgado da esquerda civilizada. Dos moderados de esquerda, que continuam a acreditar nas meias tintas do mercado regulado – como se a manápula interventora do Estado deixasse o mercado intacto. O perfeito exemplar da esquerda que tem uma convivência ambivalente com o “capital”. As inspirações teóricas, hoje remotas, encontram-se em filósofos que vilipendiaram o capitalismo. O tempo foi bom conselheiro do pragmatismo. O aconchego das regalias materiais trouxe outro tipo de relação com o outrora nefando capital. É vê-los a banquetearem-se na saudação do capitalismo que traz tiques burgueses. No restolho das ideias, vinga o velho “olha para o que digo, não olhes para o que faço”.

Há dias, no Diário de Notícias, Perez Metello andou perdido nesta ambiguidade. Começou por defender a bondade histórica dos sindicatos, como se tivessem sido os Robin dos Bosques necessários para temperar um capitalismo que se inclinava para tentações selváticas:

O sindicalismo a sério, a doer, salvou milhões de seres humanos da inanição, da fome, da morte prematura. O punho cerrado evitou que muitos dedos isolados se quebrassem na voragem de uma acumulação de capital desenfreada e desregrada. Ainda hoje ele representa a última esperança para afugentar a morte que espreita a cada esquina de jornadas de trabalho de sol a sol, a força que se continua a bater, volvidos dois séculos, pelo sustento digno de cada dia: com direito ao descanso e a uma vida familiar, à saúde e à instrução, a um futuro menos ameaçador.

Os sindicatos, a consciência da humanidade. É um tipo de argumentação que me faz espécie. É verdade que o ser humano é ambicioso por natureza. Que faz coisas impensáveis por dinheiro (até os que têm uma retórica de desprendimento dos valores materiais e, no recato da vida pessoal, abocanham tudo que podem, fazendo tábua rasa da retórica tão cheia de lirismo para consumo dos outros). Conhecemos capitalistas que mergulham no mais profundo egoísmo. Só lhes interessa o enriquecimento próprio. Não olham aos meios. Não dão grande atenção aos direitos dos seus trabalhadores.

Apesar do quadro pouco simpático para os detentores de capital (os que assim se comportam, porque interessa evitar generalizações), custa-me a crer que a estupidez humana tenha a paleta de cores sugerida pelos arautos da desgraça (Perez Metello), que idealizam o mundo horrífico em que viveríamos caso os sindicatos não tivessem sido inventados. Não imagino capitalistas esfaimados pelo lucro a sacarem da espingarda e dispararem para os seus pés. Pela metáfora, a explicação de que os “malfadados” capitalistas podem ser ignaros e pouco instruídos, mas percebem que a sua produção depende de quem trabalha. O cenário dantesco da voragem capitalista é um embuste, um esforço para revisitar a história e de a refazer num tributo aos cânones do politicamente correcto.

Perez Metello dá a voz pelos defensores dos sindicatos como herança da civilização moderna. Que me seja desculpada a ingenuidade, mas muitas vezes acredito mais nas virtudes da ordem natural. Da evolução espontânea. Os sindicatos desempenharam um papel importante, forçando a inscrição de direitos dos trabalhadores no catálogo dos direitos adquiridos. Mas apetece especular, interrogar se ao menos os capitalistas absortos pela lógica do lucro poderiam ir até ao fim de linha, oprimir sempre os trabalhadores só para estenderem os lucros. Quem acreditar nisto cauciona um pessimismo histórico acerca da natureza humana. Não só de quem detém capital e pensa que possui o privilégio de espezinhar os mais fracos, a imensa mole de trabalhadores. Também dos próprios oprimidos, como indivíduos, como massa anódina sem motivações, incapaz de se arregimentar para defender os seus interesses.

Os sindicalistas vieram deste povo que sentia a opressão. Traziam um lastro ideológico, uma cartilha bem impregnada. Não eram – como não são agora, com excepções encontradas na geografia – genuínos representantes de quem se diziam representar. Estavam mais determinados em ecoar interesses politicamente motivados. Só por arrasto vinha a retórica da opressão dos patrões aos trabalhadores, e a mobilização destes contra os “imorais privilégios” dos capitalistas.

Como prova da ambiguidade militante destes profetas das meias tintas, o articulista compõe o ramalhete no final da crónica:

Será imaginável uma tal mudança qualitativa sem que ela se reflicta na orientação estratégica do movimento sindical? E, na representação do factor trabalho, que contributo está ele em condições de dar para uma transição mais inteligente, mais qualificante, mais humana? Confesso que vejo muito poucos sinais desta busca. O que vejo é fixismo, resistência à mudança, desnorte corporativo. O "Não!" é a arma de arremesso para as reformas anunciadas. O veredicto está ditado: "Mentirosos! Mentirosos!" O que dirão quando a direita sem peias voltar ao poder?

Nem mais, Perez Metello!

29.3.06

Diga 333

Anteontem o mediático primeiro-ministro apresentou um pacote de 333 medidas para desburocratizar a administração pública e simplificar as nossas vidas. Com um slogan bombástico: “simplex” é o nome de código. Continua a operação de cosmética que trata da imagem deste governo. Servida num embrulho sedutor. Um fartote de obra faraónica prometida para os anos vindouros, com pompa e solenidade que servem, quanto mais não seja, para abrilhantar a imagem do governo. Pelo meio, os fazedores da imagem passam lustro à imaginação. “Simplex” cheira a campanha de detergente que assevera que nenhum lava mais branco.

333 medidas. Porque não 332, ou 334, ou outro número qualquer – 137, 492, 263? Número redondo, 333, num laivo cabalístico que aprisiona o governo a um manto de superstição. Afinal 333 peca por defeito. Alguns ficaram atordoados pelo efeito espectacular. Não é todos os dias que o governo saca da cartola 333 medidas. Muita coisa para se anunciar de uma só vez. Há nesta campanha um efeito ilusório que escapa aos incautos. Se a modernização da administração pública, se a simplificação da vida dos utentes passasse por apenas 333 medidas, sinal de que a administração pública não está assim tão má. Quem julga que a doença é varrida debaixo do tapete com o efeito milagroso de 333 medidas vive num país diferente, ou não sabe o que é a administração pública portuguesa. Não seriam necessárias 3333 medidas, ou até 33333, para a reformar de cima a baixo?

Não bastava a encenação esplendorosa que entra nos lares de quem deseja andar informado, não bastavam os discursos cheios de palavreado mas despidos de conteúdo, e ainda tinha que apanhar com o Costa (o ministro irrepreensível, o que sabe tudo, o que não admite ser contrariado, o delfim do primeiro-ministro) numa exibição de humor que pede meças ao bolorento humor de caserna, ou do Parque Mayer. Disse o Costa, à espera das gargalhadas fartas da audiência de seguidores, que sabia que o seu chefe gosta de contribuir para a reciclagem de resíduos. Foi o mote para uma ideia peregrina: há os pontos verdes para reciclagem de lixos, há os pilhões, porque não contentores para a papelada que a burocracia do Estado vai dispensar depois das 333 medidas terem nascido?

(O Costa anunciou a medida como quem conta uma piada. Registe-se o clima de governação desanuviada, o toque de humor sublime com que estes rosas tentam desgovernar. Quem sabe se o estilo não faz seguidores? Fica-lhes uma compensação: quando deixarem de poluir com a sua existência governativa, têm pela frente uma promissora carreira de humoristas na televisão. Quando penso que há almas caridosas que sancionam o travo de humor como sinal de que o bafio da governação cinzenta pertence ao passado, detenho-me na perplexidade. Serei eu insensível ao humor sublime dos governantes que aliviam o exercício cinzento da governação? Ou estão eles, aprendizes de humoristas, confundidos nos planos – se querem fazer humor, inscrevam-se num concurso de stand-up comedy – imersos no lamentável espectáculo em que são palhaços de si mesmos? Aquele ar do Costa, a lançar a piada quando já esboçava o riso que era o mote para as gargalhadas sonoras do séquito, fez-me lembrar aquele personagem que se desfaz em gargalhadas com a sua própria piada, mesmo antes de a terminar.)

Como este governo é dado aos insondáveis mistérios da numerologia, deixo aqui o meu contributo para se ajuizar o destino do “simplex”. Quando se tira a prova dos nove a 333, o resultado é zero. O índice de competência do governo. E parece-me que a ambição desmedida de bolsar 333 medidas de jacto pode embrulhar este governo num grande 31.

Prometer é fácil. Cada vez mais a governação é um campeonato de promessas. Os governos prolongam a campanha eleitoral para a governação. É na campanha eleitoral que os candidatos se passeiam numa orgia de promessas. Promete-se tudo e mais alguma coisa, de preferência o irrealizável. Eleitos os que vão governar, continuam apoderados pelo vírus das promessas. Anúncios de medidas e mais medidas, quase sempre sem se chegar a ver o fundo ao tacho, sem que as prometidas medidas alguma vez tenham visto a luz do dia.

Marcamos encontro daqui a um par de anos, para saber quantas das 333 medidas funcionam.

28.3.06

A ruptura: a aventura do emigrante

A deportação forçada dos emigrantes portugueses no Canadá traz-me algumas reflexões. Sobre o fenómeno da emigração. Em particular, o que a emigração significa para quem se aventura em terra estranha. A acreditar no adágio, é a necessidade que aguça o engenho. As pessoas dispõem-se à aventura num país estrangeiro porque procuram uma vida melhor. Os emigrantes são a tradução do país aziago que deixam para trás.

Apostam numa vida melhor, sem garantias que a aventura fora do país garanta mais bem-estar.Partem para o desconhecido, na ênfase do travo aventureiro de quem pega na trouxa e deixa família, amigos, hábitos e o ternurento amor à pátria. Instalam-se num país tão estranho que nem sequer a língua conhecem. Imagino a desorientação do emigrante quando chega a um local e não percebe o que lhe dizem, não compreende o que lê quando anda nas ruas. Alguns dirão: são essas pessoas que se desembaraçam melhor, muita linguagem gestual, aprendendo em pouco tempo as palavras básicas que abrem as possibilidades de comunicação. Pegando no emigrante típico, desinstruído, imagino a atrapalhação da língua estranha, a impossibilidade de comunicação, as paredes altas que se erguem nos momentos iniciais após a chegada à terra distante para onde emigrou.

O estereótipo do emigrante não é simpático. Há uma imagem negativa do emigrante, no regresso sazonal à santa terrinha em tempo de férias, ou quando decide que chegou o momento de terminar a aventura da emigração. O estereótipo alimenta o imaginário: as duvidosas opções estéticas, o alambazar de música pimba que enriquece os artistas do género (que encontram no emigrante o seu filão), as casas que descaracterizam a paisagem rural, na importação espúria de elementos arquitectónicos de mau gosto que desfeiam a paisagem.

Trazem o sotaque que adquirem na terra para onde emigraram, tantas vezes com neologismos forçados que são apenas o assassínio da língua mãe que desaprenderam no estrangeiro. Outras vezes querem afirmar a sua superioridade em relação aos nativos, como se a condição de emigrante lhes desse algo mais em relação aos concidadãos que nunca tiveram o rasgo de sair da terra que os viu nascer. Outras vezes, falam nas línguas que aprenderam nos países que os hospedaram. Passam um atestado de ignorância a quem os ouve, acreditando que somos analfabetos na língua que aprenderam na terra da emigração. Sem surpresa: nunca conheceram a escola onde se ensinam aquelas línguas.

É fácil zombar dos emigrantes quando regressam ao contacto connosco, nativos que vegetamos no rectângulo que encerra o sudoeste da Europa. Conceda-se, são os emigrantes que se põem a jeito da troça. Nem por isso se pode esquecer o acto de bravura de um emigrante quando se lança no desconhecido. Empacota os seus parcos haveres e parte para uma aventura que não sabe se vai compensar. Os emigrantes de agora partem com o capital da experiência dos emigrantes antepassados. A aventura no desconhecido era total quando as primeiras pessoas abandonaram o país em demanda de uma vida melhor. Agora sabem que isso é possível. Olham aos exemplos de abastança que alguns emigrantes gostam de ostentar quando se pavoneiam na aldeia, no Agosto de férias que os vê de regresso. Os que ousaram partir à aventura, sem exemplos para se escudarem na tranquilidade do menos desconhecido, tiveram uma heroicidade que rivaliza com a empresa aventureira dos descobrimentos. Foram eles que desbravaram terreno, partiram sem saber se a vida nova ia trazer a recompensa esperada. Uma aposta no escuro.

Há outro factor perturbador na emigração, quando alguém se aventura sozinho, deixando família e amigos para trás. Chegar a um local desconhecido, com uma língua ininteligível, hábitos novos, alimentação esquisita, não são os desafios maiores. É a solidão que invade o espírito, um deserto imenso pela frente até começar a cultivar novas relações pessoais. A perturbação de novas pessoas por conhecer, novas relações por sedimentar. Este seria o desafio maior, caso algum dia tivesse planos para partir à aventura, sozinho, em emigração.

27.3.06

A polémica dos imigrantes ilegais no Canadá

Tem causado incómodo a decisão do governo canadiano de deportar os imigrantes que não legalizaram a sua situação. É assunto que tem feito correr tinta entre nós, dado que os portugueses são uma comunidade numerosa entre os imigrantes canadianos. Contam-se histórias lavadas em lágrimas, pessoas que já vivam há largos anos no Canadá, aí estabeleceram as suas vidas, compraram casas e automóveis, já se sentiam integrados na comunidade local. E como lhes foi fixado um prazo curto (quinze dias, ouço no testemunho de uma pessoa que acaba de regressar aos Açores) para deixarem o Canadá.

Estive em Toronto em 2000. O que me impressionou mais? O caldo de etnias que fervilhava nas ruas. Em reforço do carácter multi-étnico do Canadá, cartazes em autocarros, no metro, em outdoors, com um apelo em letras garrafais à entrada de imigrantes. Os cartazes retratavam pessoas de diversas etnias e continham um convite: “traga os seus familiares. Eles são bem-vindos ao Canadá”.

Numa das disciplinas que ensino, há um tema que toca levemente o problema da emigração. Explico que se tem enraizado a tendência dos países ricos aliciarem os países pobres com regalias comerciais se estes conseguirem travar os fluxos migratórios que desaguam nos países que desfraldam um mundo de oportunidades. É a perversidade de trocar pessoas por coisas: ou de como os países ricos encontraram solução para travar a entrada maciça de imigrantes que chegam de países pobres, prometendo abertura de mercados aos bens oriundos dos países pobres se as respectivas autoridades souberem pôr um travão na saída de pessoas. Costumava apresentar a excepção do Canadá. Dava o testemunho pessoal, as sensações de Toronto, para mostrar que há um país que se recusa a entrar na estratégia de trocar mais regalias comerciais por menos fluxos migratórios. As orientações do novo governo canadiano obrigam-me a rever a exposição.

A comunicação social mostra uma relação de causa e efeito: as restrições à imigração ilegal são a imagem de marca do novo governo, um governo conservador. Não caio na esparrela de marcar posições de forma tão simplista. Infelizmente, a comunicação social é, hoje, pródiga na militância de causas e menos nos relatos imparciais e rigorosos. Não importa indagar as razões que levaram o governo conservador canadiano a ser inflexível com os imigrantes ilegais. O que importa é passar a mensagem que a mudança de cor política trouxe uma nova orientação na política de imigração, a inflexibilidade.

Note-se bem, não estou a salvar a face dos conservadores canadianos. Se eles têm a mesma marca genética dos conservadores vizinhos dos Estados Unidos, estou quase nos antípodas. Apesar disso, custa-me ler os sinais codificados enviados pela comunicação social, como se nos tratasse de intoxicar. Uma intoxicação com predicados pedagógicos: sejamos incautos que compram tudo o que é veiculado pela comunicação social e depressa estamos a ser educados por ela, a embarcar nas mesmas causas que arregimentam a sua militância.

No meio da polémica, ainda não vi ninguém a parar para reflectir: quem está a ter ordem de deportação são pessoas que nunca legalizaram a sua situação. Imigrantes ilegais. Pode-se acusar o novo governo canadiano de insensibilidade ao dar conta que há imensas pessoas que não têm a sua situação regularizada? Nisto do cumprimento da lei, há dois comportamentos possíveis: ou a lei é cumprida, com todas as consequências que daí resultam, mesmo as menos simpáticas aos olhos de um povo condescendente com o rompimento de leis; ou sabe-se da sua existência mas faz-se vista grossa ao cumprimento, postura muito em voga, aquilo que se chama “flexibilidade”. As leis existem sabendo-se que não são para cumprir. É o cenário mais agradável para um anarquista: destrói a autoridade do Estado, de cada vez que os próprios agentes do Estado fecham os olhos ao desrespeito da lei. É como a prostituição: proibida, mas tolerada.

Ignoro as motivações das autoridades do Canadá neste assalto aos imigrantes ilegais. Não sei se é apenas para mostrar a autoridade de quem quer fazer cumprir as leis. Ou se é a percepção de que o Canadá atingiu o ponto de saturação e já não carece de tantos imigrantes para fazer funcionar a economia. Só gostava que as histórias compungidas dos emigrantes portugueses tivessem outra moldura. Que alguém lhes dissesse que todo o tempo que deixaram passar sem legalizarem o estatuto de imigrantes foi a maior imprudência que cometeram.

Agora é fácil apontar dedo acusador ao governo do Canadá. Que, vê-se nitidamente, só pode ser conservador. É o estigma da direita amaldiçoada que levanta fidelidades caninas. A culpa, tantas vezes, acerta no alvo errado.

24.3.06

Já que as causas estão na moda, uma pela salvação de Monza

Monza é um autódromo em Itália. Os adoradores do automobilismo chegam a cometer a heresia de lhe chamar catedral. Os bispos perdoarão a heresia, eles que também perdoam ao povo benfiquista o baptismo de “a catedral” para o estádio do Benfica. (A menos que fale mais alto o purismo religioso, aquele que tão asperamente se critica quando emana do Islão, e se restrinja a utilização do vocábulo “catedral” a matérias metafísicas.) Os adeptos do automobilismo olham para Monza como os devotos do catolicismo veneram o Vaticano. Não é obra do acaso conotar catedral com Monza.

Há dias li uma história que deve trazer os adeptos do desporto automóvel afundados na mais profunda angústia. Meia dúzia de pessoas que habitam nas redondezas do autódromo querem silenciá-lo. Alegam que o autódromo perturba o seu sossego, pelos decibéis em gritaria que se soltam dos tubos de escape dos bólides. Quando estas pessoas foram viver para as imediações do autódromo já Monza existia, já Monza tinha testemunhado as páginas mais douradas, e as mais trágicas, da história do automobilismo. O circuito não nasceu depois das casas habitadas pelos descontentes.

Um juiz sequioso de notoriedade, ou crente que os juízes têm o dom da redenção dos mortais, aceitou a queixa. Sentenciou, o juiz: doravante só poderão realizar-se corridas se os bólides instalarem silenciadores nos escapes! Ou o juiz é ingénuo, sem saber o que são corridas de automóveis, talvez adivinhando que os bólides são bólides com escapes silenciados; ou é um hipócrita assassino do desporto automóvel (e de Monza), se souber que sem o ruído dos escapes se perde o purismo das corridas, perde-se muita da performance dos bólides. Se o juiz não tem nada de ingénuo e se enleou nos labirintos da hipocrisia, antes tivesse a frontalidade de sentenciar o fim das corridas em Monza.

Bem vistas as coisas, a perplexidade não atinge apenas quem cultiva o gosto pelo automobilismo. Este é um exemplo de como uma casta de iluminados (excêntricos magistrados que se arvoram na condição de descendentes na terra de uma celestial divindade) persiste na convicção de que paira acima dos mortais e pode forçar a justiça que é necessariamente feita de acordo com a sua visão peculiar do mundo. A sentença do juiz é inqualificável: dá razão ao sossego de meia dúzia de elementos que já não suportam mais o ruído que lhes chega de Monza. Passa por cima dos interesses dos demais habitantes das redondezas que, ao que parece, não subscreveram o protesto. Sem mencionar uma pequena multidão de apaniguados do automobilismo, condenados ao orfanato de referências míticas. Pelo meio, os oportunistas do costume pularam de contentamento e colaram a sua causa ao protesto. Ambientalistas e aliados não tardaram a surgir como advogados dos tímpanos doridos da meia dúzia de protestantes.

E reitero que tudo isto deve preocupar não apenas os adeptos do automobilismo. Concedo, argumento com a parcialidade de quem tem no automobilismo o seu desporto favorito. Por um momento tento esquecer esta declaração de interesses. Tento fazer de conta que o meu desporto preferido é o curling, o hipismo, o remo. E ainda assim mantém-se a perplexidade com a sentença do juiz. Ao pesarem interesses em conflito, os magistrados devem olhar aos números que fazem inclinar a balança para um dos lados. A justiça não se pode demitir de imperativos democráticos. Quando um iluminado juiz decide a favor de uma insignificante minoria, espezinhando os interesses de uma larga maioria, entra em negação dos valores da democracia na justiça. Faz a justiça que lhe apraz, apenas.

Este mundo, tão cheio de causas fracturantes, abeira-se do precipício da incerteza total. Não é denegação do relativismo de que J. C. Espada é feroz detractor. Apenas um protesto contra os dados incertos das análises subjectivas de coisas que merecem ser apreciadas pelo prisma da objectividade. Que o juiz não goste de automobilismo, ou que em tempos tenha perdido uma namorada para um piloto de automóveis, ou que tenha inveja do glamour que envolve as corridas de carros – nada disto pode sopesar a aplicação de justiça. Qualquer dia, obrigam aeroportos a mudar-se, ou aviões a ficarem em terra, porque meia dúzia de pessoas padece de cefaleias pelo ribombar dos motores supersónicos dos aviões. E por aí fora: exemplos não faltarão.

Às vezes sinto que estes profetas do novo iluminismo estão a matar o mundo aos poucos.

23.3.06

O fascínio da modernidade

A modernidade altera os costumes. Quando era pequeno e cometia a bizarria de falar comigo mesmo, diziam-me, em brincadeira, que quem fala sozinho não está no seu perfeito juízo. Convencionara-se que uma pessoa só pode falar quando tem um interlocutor. Ou resguardar os pensamentos para o seu íntimo.

Agora que o tempo passou e muito avançou a tecnologia, os hábitos estão em mutação. O que dantes causava estranheza e, por isso, rareava nas ruas, agora é lana-caprina. Pessoas que se passeiam falando sem que ninguém esteja por perto. Pessoas que conduzem automóveis sem a companhia de passageiros e falam entusiasmadas. Quando a novidade conheceu a luz do dia, causava pasmo ver os pioneiros proprietários de auriculares a falarem imersos na sua solidão, quantas vezes com o esbracejar que tipifica alguns. O utensílio foi-se vulgarizando, o hábito entranhou-se.

Agora já posso ir na rua a falar com os meus botões que ninguém olha com ar de incredulidade, outras vezes de estupefacção, outras vezes de dura reprovação social de quem é penhor dos valores cimentados. Posso nem ter nenhum auricular, ou daqueles utensílios mais modernos que dispensam os inestéticos fios que tombam do ouvido pelo tronco abaixo. Posso trazer comigo um desses aparelhos sem fios (que um lapso de memória faz com que não me recorde do nome), como se fosse um aparelho que melhora as capacidades de audição de quem ouve mal. Posso andar rua fora a falar sem ter alguém como destinatário da oratória, a não ser a minha inusitada demência. Agora tenho a bênção da modernidade, que me livrou dos olhares de espanto, dos olhares de comiseração por pensarem que o falante solitário estava apoderado pela dementação incurável.

É o tempo que muda os usos. A tecnologia que progride traz maquinaria que alicerça a alteração de hábitos. Já tinha acontecido com os telemóveis, que nos põem contactáveis em qualquer momento, em qualquer lugar. O telemóvel desnuda-nos perante os outros. Perde-se a clandestinidade que outrora era possível, quando os telemóveis pertenciam ao devir que alguma vez haveria de chegar. Agora a clandestinidade do ser, o secretismo do que somos e donde estamos, reclama a anormalidade de não ter telemóvel, ou de o ter desligado. Senão quem nos tentou contactar fica à espera de uma justificação para o telemóvel estar desligado (“fiquei sem bateria”, ou “estava num local sem rede”) ou para a chamada não atendida (“a música no carro estava muito alta”, ou “estava numa reunião importante e não podia atender”) – mesmo que tudo não passe de uma mentira redonda.

O advento das telecomunicações que se pulverizam por todo o lado e por todas as pessoas tem méritos. As pessoas comunicam-se mais, sobretudo quando estão longe e querem matar saudades. Até é possível enviar fotografias pelo telemóvel, já para não falar num preciosismo que há uns anos era do domínio da impossibilidade: ao mesmo tempo que se fala ao telemóvel, ver quem está do outro lado e fazer-se ver por essa pessoa. Há o lado desconfortável. Com as telecomunicações móveis de terceira geração, o desnudamento da privacidade é total. Não se pode mentir acerca do local onde se está quando uma chamada é atendida e pode ser visualizada do outro lado. Mas ainda existe a possibilidade de esconder a companhia que não se quer revelada a quem faz o telefonema. É só colocá-la fora do alcance da câmara que transmite a imagem enquanto dura a chamada telefónica.

A massificação das telecomunicações móveis adicionou mais regras ao léxico dos costumes sociais. Não é apenas a cruzada anti-tabagista que faz crescer de tom a reprovação social quando alguém puxa, distraidamente, de um cigarro num restaurante, estando na mesa ao lado outras pessoas a meio da sua refeição. Nasceu um novo sinal, sucedâneo dos sinais de trânsito, que obriga a desligar telemóveis – em cinemas, museus, locais de culto religioso, bibliotecas. Se acaso um distraído é colhido de surpresa pelo toque polifónico (como de hábito, estridente e inestético para a audição), arrisca-se a que uma chusma de olhares de reprovação tombe sobre si (já para não falar da humilhante reprimenda do funcionário destacado para accionar o castigo).

Hoje lembrei-me deste simples devaneio. Cruzo-me vezes sem conta com passeantes que falam sem terem ninguém por perto, exibindo os auriculares com fios e sem fios que a parafernália de gadgets telefónicos oferece. E recordei-me como falar sozinho era o sinal da loucura por perto. Sinal dos tempos, o comentário jocoso foi remetido para o lugar da arqueologia.

22.3.06

O “paradigma” da linguagem hermética

No regresso a casa, aguardava que o semáforo abandonasse a cor vermelha. Ouvia a crónica de um arquitecto sobre (des)ordenamento urbano. Não apanhei a prédica desde o início. Escutei três a quatro minutos de uma narrativa deliciosa. Sem correr o risco de errar, nesses três ou quatro minutos o arquitecto empregou cerca de trinta vezes a palavra “paradigma”. Era o paradigma disto, o paradigma para a frente, o paradigma errado, o paradigma acertado que não há coragem de adoptar. Não exagero: quando reparei que a verborreia estava enxameada de “paradigmas” comecei a contagem mental. Terminei no número vinte e três, tantas as vezes que o arquitecto usou a palavra.

A narrativa era deliciosa: impregnada de termos técnicos, embrulhada numa linguagem de difícil compreensão para os leigos. Era uma crónica inserida numa rubrica opinativa com a chancela da ordem dos arquitectos, mas incluída no horário nobre de uma das principais estações de rádio (hoje não me apetece fazer publicidade gratuita). Não se exige destreza intelectual para discernir que os ouvintes, àquela hora, ultrapassam o universo dos arquitectos que tiram uns minutos do seu final de tarde para escutar os colegas convidados a opinar via telefone. O grande público é o destinatário.

Intriga-me como se pode chegar ao grande público com uma linguagem presa aos tecnicismos. A escorregadela excessiva para o “paradigma” é apenas a cereja no topo do bolo (quantos ouvintes saberiam, antes da consulta ao dicionário, o significado da palavra "paradigma"?). Existe o hábito de acusar os juristas de empregarem uma linguagem inacessível. Um discurso redondo, cheio de desvios retóricos que fogem da eficácia da mensagem. O sampaiês é um “paradigma” do discurso nada atractivo dos juristas. Quando estava a ouvir o arquitecto dei comigo a pensar que a acusação que pesa sobre os juristas é injusta. Para ser rigoroso, a acusação popular não é de todo injusta; mas devia olhar para o lado, para outras categorias profissionais que também resvalam para uma linguagem fechada, apenas acessível aos seus pares. Os arquitectos padecem deste mal, como acontece também com os médicos, entrevistados em rádios e televisões, que compõem o rosário das maleitas do paciente com termos incompreensíveis. É a melhor maneira de não se fazerem entender por quem os ouve. Um diálogo de surdos, portanto.

O arquitecto, ontem, mergulhou numa linguagem técnica e com a roupagem do discurso académico. Nada contra o discurso académico (contra mim falo, que o tenho que usar no local adequado). O discurso académico deve ficar dentro das universidades e dos congressos onde especialistas do mesmo ramo se reúnem para comunicar entre si. Quando transborda os muros da universidade, o discurso académico esbarra no atónito público, boquiaberto com a hermética linguagem (enquanto não vai emprestar os ouvidos a coisa mais interessantes). A menos que a rubrica que às terças-feiras antecede o noticiário das sete da tarde seja um monopólio auditivo dos arquitectos, fico sem perceber qual a lógica do discurso de ontem.

Têm razão os que protestam contra o divórcio entre universidades e o mundo lá fora – as empresas, os cidadãos. Contra quem produz ciência e a encerra numa linguagem inexpugnável, apenas acessível a uma casta de especialistas que comunicam entre si, em círculo fechado. Nada me move contra esta exigência do mundo académico. É o costume enraizado, e escapar dele cristaliza a marginalização entre os pares do meio académico. Quando, à partida, sabemos as regras do jogo, ou o jogamos seguindo as regras ou nos sujeitamos às consequências dos desvios. O que não consigo perceber é a exportação da linguagem académica, hermética, para o mundo exterior à universidade. Para uma audiência sem preparação para a decifrar. Um discurso que não chega ao público-alvo contém uma menagem ineficaz. O orador a falar para si mesmo, apenas.

Depois da vigésima terceira utilização (na minha contagem) da palavra “paradigma”, o arquitecto findou a oratória. Fiquei então a saber que a rubrica é patrocinada pela ordem dos arquitectos. Afinal quem tinha estado entretido com a palavra “paradigma” não era um arquitecto. Era a arquitecta Helena Roseta…

21.3.06

Os poetas, arquitectos da palavra (dia mundial da poesia)

E por dentro do amor, até ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro no amor.


Herberto Hélder, "A fonte, II" in "Ou o Poema Contínuo", Assírio & Alvim, 2004.

A poesia, a forma mais nobre de comunicação. É aí que as palavras encontram sublimes artes de serem ditas, na singeleza dos amontoados de estrofes que compõem o poema. Os poetas, esses, os verdadeiros arquitectos da palavra. Ninguém como eles as consegue usar com os dotes de magia, o encantamento que exala de um poema. Nada de mais errado no aforismo popular que adivinha que de médico, poeta e louco todos temos um pouco. No que toca a poeta, muitos podem ser aspirantes à condição. Poucos os que têm o privilégio de a interiorizar. O cadafalso do adágio popular é retumbante, no que ao poeta diz respeito: como pode um louco ser o visionário que tem o condão de usar as palavras com a arte de um poeta?

Pela poesia, uma miríade de sentimentos. Ora arrebatamento, no turbilhão das palavras que se sucedem com a velocidade vertiginosa de um poema lido de supetão. Ora umas curtas estrofes, palavras simples que tanto querem dizer. Outras vezes, as palavras dolorosas que saem da mão do poeta, um choro sofrido que se compõe no poema lancinante. E ainda a sátira, que escorre com as palavras desabridas encostadas nos versos. Há quem encontre no poema a forma sublime de cantar uma paixão. Porque, sempre, no poema há a liberdade da palavra. Na poesia que foge do espartilho da métrica, das convenções literárias que destilam requisitos para aceitar um poema no altar da poesia.

Poemas imagens, poemas retratos, poemas que são a dilaceração de almas sofridas. Ou poemas que se limitam a observar os elementos, tecendo loas à fúria do vento que descompõe as cidades e os campos, ao mar suave onde apetece deitar num dia cálido, ao encanto dos olhos que enternecem no momento em que o poeta fica em hipnose pelo encantamento do olhar.

Há num poema a forma mais alta de falar. Seja na voz doída dos poetas desencontrados com o mundo, ou na voz sussurrada de quem segreda o poema clandestino. Às vezes o poema faz-se voz de combate das militâncias que se perseguem. Há poesia política – poesia menor, na perversão da poesia pela militância política. Onde a poesia se reencontra com a sua essência é na singeleza do que os olhos vêem, ou os sentimentos captam, e emolduram no caixilho de um poema. Poesia é sobre a reinvenção da linguagem, a redescoberta das palavras que se casam em felizes combinações. Resultam em poderosas estrofes que são lidas repetidas vezes, sem o cansaço das releituras – antes, na inebriante posse dos versos que aquecem os sentidos do leitor.

E a poesia é um acto supremo de liberdade. Quando a poesia se adensa na complexidade da escrita, ao deixar nas entrelinhas várias leituras possíveis, ela estende a passadeira ao leitor. Convida-o a ser o intérprete pessoal do sentido da poesia, como se o poema saísse inacabado do poeta à espera de ser completado, no seu sentido, pelo destinatário. Como de um quadro se tratasse, pela liberdade de tradução dada a quem o visualiza. Nos versos, as palavras múltiplas escorrem como pinceladas que se vão acumulando no quadro. Através da leitura das estrofes, o poema vai sendo reconstruído pelo leitor. Que se torna ajudante do poeta, na oferenda do poema que se revela em tantos significados quantos os destinatários.

É na poesia que encontro um refúgio necessário. Como se entrasse num mundo à parte, estanque, onde todos os poemas – mesmo os que configuram uma tumultuosa sedimentação de palavras – aquietam o espírito sobressaltado. Já o revelei outrora e hoje deixo-o reforçado em versão alternativa: pudesse o tempo voltar atrás e reviver a meninice, quando sobre as crianças tomba a pergunta sacramental – o que queres ser quando fores grande – só para poder responder “poeta”.

20.3.06

A França é um país perigoso para viver


Borbulham as bolsas de violência quando se esboçam os ventos da mudança. Pode ser contestável a visão, mas os ventos de mudança tentam inscrever a França no caminho da esperança. Pode haver quem discorde. Pode haver quem considere que uma lei que permite aos empregadores despedir jovens com menos de vinte e seis anos nos dois primeiros anos do contrato, sem lugar a compensação, é uma lei iníqua. Como há os que acreditam que essa lei é feita em favor dos tais jovens que bradam aos céus contra um mercado laboral que os exclui à partida.

Não me interessa discutir os méritos ou deméritos da lei. Apetece-me demorar sobre a contestação sonora que leva à violência sancionada pelos profetas de sempre. O direito à manifestação não está em causa. O direito à opinião deve ser assegurado. Tal como o direito ao disparate. Quando os limites do aceitável são ultrapassados, dá-me prazer assistir à resposta da polícia. Os canhões de água que troam sobre os manifestantes excitados, a água fria que tempera os excessos. Regalo-me com os bastões policiais que caem sobre as costas dos violentos desordeiros. Rejubilo com imagens de energúmenos arrastados pelos cabelos, tentando resistir à detenção.

Por princípio, sou contra a violência que a polícia exerce. Porque a exerce em nome da autoridade do Estado, como seu braço armado. Para alguém com tendências anarquistas, a parada de fardamentos policiais motiva desconfiança e desconforto. São os instrumentos da autoridade daquilo que um anarquista combate. E, no entanto, abro uma excepção quando testemunho as imagens dos folclóricos jovenzinhos que se reclamam do pacifismo e, num passe de magia, esquecem a teoria e passam à provocação, com o cardápio de violência que desmascara o pretenso pacifismo das causas.

Estes exacerbados manifestantes, em turba, provocam desacatos, provocam os polícias. Eles sabem que os polícias são treinados para terem pouca paciência em relação a quem os provoca. Insuflam-se de coragem e escaqueiram tudo o que encontram na debandada. Automóveis dos incautos que tiveram a infelicidade de ali estacionar, no lugar errado e no momento errado; cafés e lojas, franchisados, ou do comércio tradicional que os seus ideais deviam defender, são varridos pela violência que ataca indiscriminadamente; é inevitável, os restaurantes McDonald’s e outras lojas que mostram o perfume da globalização são vandalizados. Como se sabe, os proprietários destas lojas franchisadas e dos estabelecimentos de comércio internacional são os inspiradores das leis que cerceiam os direitos adquiridos dos desprotegidos. Eles, os fautores das leis, não os governantes. Percebe-se que os actos de violência sejam perpetrados sobre quem influencia este atropelo aos direitos adquiridos.

A comunicação social, como é habitual, transmite o episódio com uma capa de romantismo. Num apelo aos espectadores para serem condescendentes com os manifestantes que ofendem, provocam, destroem, exibem toda a sua intolerância. Pedem para sermos tolerantes para com quem vomita tanta intolerância. É uma comunicação social que toma partido, ofuscada pelo romantismo perdido do Maio de 68. Até porque não perde tempo a tecer as pontes entre estas manifestações e o Maio de 68, como se houvesse comparações entre coisas incomparáveis. Desfiam um rol de parcialidades: os registos da violência da matilha esfaimada são passados sem nota de reprovação; as cargas da polícia – em resposta a desacatos e provocações da turba inflamada – são condenadas, como se a polícia nem devesse estar presente para não incomodar a festival de folclore pontuado com actos de violência, roubo, pilhagem.

Se esta é a França que tenta, em desespero, salvar a face como paradigma do “modelo social europeu”, vou a correr entregar-me nos braços do “modelo americano”. Já dei mostras do meu anti-americanismo quase primário. Mal por mal, antes a tolerância do lado do lá, a flexibilidade que joga a favor dos desprotegidos (por mais que os arautos que vociferam contra a globalização e o capitalismo não o queiram admitir), a condenação dos que se manifestam sem respeitar a propriedade alheia, que nada tem a ver com as causas de que os manifestantes discordam.

É esta a França que tenta resguardar os cadáveres bafientos, enclausurados em armários cujas portas são impossíveis de abrir. A França numa fornalha, incendiada por quem não percebe que os tempos mudam e que as fantasias cultivadas são uma memória do passado que trouxe o apogeu francês. Apenas uma nostalgia. Eles não percebem que a teimosia afunda a França na melodramática asfixia de si mesma. Se é esta a França que vai vingar, no rescaldo da turbulência social, não é esta a Europa que quero herdar.

17.3.06

A teta dos agricultores

É recorrente: os agricultores saem dos campos e enxameiam as estradas com os seus tractores a passo de caracol, engrossando as filas de trânsito que se acumulam atrás. Nas praças, estacionam à frente da representação local do ministério da agricultura, o eterno patrono. Tiram os megafones da algibeira e começam a vozearia. Sempre que há retirada de “direitos adquiridos” (subsídios que mais nenhuma actividade tem) unem forças e deixam os pulmões falar em voz alta, com a amplificação sonora dos megafones. No mapa são poucos, mas falam como se fossem uma imensa maioria.

Há sempre um agricultor empertigado que protesta. O choradinho da praxe: vivem à míngua, são uns desgraçados, a “Comunidade Europeia” é o seu túmulo, os espanhóis fazem concorrência desleal, os consumidores lusos ingratos que preferem géneros agrícolas de outros países. Quando há notícia de que os subsídios vão descer, ou que uma das incontáveis modalidades de pagamentos-para-isto-e-para-aquilo fica retida nos cofres do Estado, pedem a cabeça do ministro da agricultura. Há dias ouvi o protesto excitado de um agricultor. Encavalitado em cima de um tractor, empunhando o megafone, o agricultor bradava as palavras de protesto:

Um ministro da agricultura deve defender em Bruxelas os interesses dos agricultores portugueses. Um ministro da agricultura deve lutar por mais dinheiro da Europa para os agricultores portugueses.

E como o ministro terá esquecido uma promessa que fez há meses, agora leva com o rótulo de mentiroso, coisa pouco simpática de se ouvir. Não estou aqui pelas promessas que o ministro terá esquecido. Estou pelo comportamento imutável dos agricultores, sempre de mão estendida à espera de receber mais um subsídio-para-tudo-e-mais-alguma-coisa. E se a corporação se queixa do mal que a União Europeia lhes fez, estão no exercício gratuito da ingratidão: não dizem que a União é mais uma fonte de subsídios.

Quando vejo um agricultor em Montemor-o-Velho a exigir que o Estado lhe entregue mais dinheiro, cheira-me a pornografia barata. Um vómito em cima de quem paga os impostos e não tem válvula de escape. Os que contemporizam com os generosos subsídios que servem de segurança social e tudo o resto aos agricultores, ou são ingénuos ou não curam das suas próprias carteiras. Poderão dizer que a agricultura é uma actividade específica, com grandes riscos devido à incerteza climática e atmosférica, que num instante pode levar o esforço de meses a fio. É para isso que existem seguros.

Não compreendo porque devemos ser todos nós, pagadores de impostos, forçados a mostrar solidariedade para com a corporação de agricultores. Já não basta sermos obrigados a pagar preços exorbitantes pelo que comemos? E, há que o recordar, vão-nos ao bolso porque os nossos agricultores não conseguem ser competitivos. Como se fosse um prémio pelo mau desempenho, sobre eles chove uma enxurrada de subsídios.

Mais perplexo fico quando olho para os exemplares da corporação agrícola que desfilam em sucessivos protestos. Não têm a aparência de agricultores pobres, nem sequer remediados. Têm a aparência de senhores bem postos na vida, cultores da ruralidade que tem um travo da qualidade de vida que não está acessível aos que mergulham no bulício das cidades. Têm o aspecto de quem se faz passear em jipes de dezenas de milhar de euros. São eles que exigem mais paternalismo do Estado, que a torneira dos subsídios permaneça aberta. Desviam dinheiros que podiam ter utilização mais produtiva. Ou, na linguagem dos que são atreitos ao fenómeno, “dinheiros com utilidade social”.

Por cada euro que lhes seja distribuído, encarece o preço da comida. Menos é o dinheiro disponível para os que são verdadeiramente pobres ou remediados, a quem não resta outra opção senão pagar caro pelo que têm que comer. Se já não bastasse a duvidosa opção de exigir à imensa maioria (consumidores) que sustentem uma escassa e improdutiva minoria (os agricultores), adiciona-se o absurdo de retirar aos pobres para garantir a sobrevivência de uma casta que se sabe manter de pé porque pode contar com a generosidade de quem faz a gestão dos impostos que pagamos. Robin dos Bosques não gostaria de saber que o Estado Social tem estas derivas…

Há algo que me intriga em tudo isto: a desfaçatez dos ricos agricultores que aparecem de mão estendida, sempre a pedinchar. Tento-me colocar no seu lugar. E não me consigo ver na pusilanimidade de estar sempre a receber esmola do paternal Estado. Até pela incómoda sensação de me saber sustentado por uma imensa mole que paga impostos. Todavia, há quem goste de fazer o papel de pedinte e se sinta orgulhoso da condição. Mesmo que no limiar da abastança, entre os nenúfares da incapacidade para a produção, cuspam intermináveis ofensas à imensa maioria que os sustenta.

16.3.06

A recriação da bandeira nacional

O fornecedor de equipamentos da selecção nacional de futebol fez mudanças cosméticas nas roupagens, o que tem causado algum alvoroço. Quando os bravos pleiteadores da bola entrarem nos estádios alemães para medirem forças com mexicanos, angolanos e iranianos (pelo menos), vão envergar um equipamento todo vermelho. Desapareceu o verde dos calções, que completava a alusão perfeita do vestuário à gloriosa bandeira nacional. É no equipamento alternativo que a mudança tem o perfume de uma revolução: todo preto.

Já li manifestações de incómodo com a opção da multinacional dos equipamentos, qual ditadora entidade que calcou as tradições e a simbologia da “pátria”. Os mais desconfiados confirmam, com o episódio, que a globalização é um furacão devastador que leva tudo por diante – até as cores que identificam uma “pátria”. Outros, menos propensos à conspirativa teoria, ficam-se pelo desgosto pessoal ao verem a nova paleta de cores dos equipamentos. Caldeiam-no com estranheza pelo desaparecimento do verde, por um equipamento todo negro quando os nossos não puderem entrar em campo de camisola vermelha. Vêm na mudança o rasto perdido da simbologia nacional. Como se fossem as camisolas que traduzem a destreza dos praticantes ou houvesse um cabalístico receio de que novas vestimentas afastem as vitórias.

Confesso a ignorância da simbologia da bandeira nacional. Que me lembre, foi matéria nunca ensinada nos bancos da escola. Assunto que não tinha despertado a minha curiosidade, até hoje. Vivi apaziguado com a consciência, na ignorância da simbologia nacional. Há coisas mais importantes. Perante o incómodo de algumas pessoas, fui em demanda das razões da bandeira vermelha e verde com escudo armilar. O resultado da pesquisa foi este:

A cor verde representa a esperança em melhores dias de prosperidade e bem-estar e também os campos verdejantes. A cor vermelha, o valor e o sangue derramado nas conquistas, nas descobertas, na defesa e no engrandecimento da pátria (estava “Pátria”, no original). (…) O escudo pequeno é branco e encerra cinco escudetes azuis pequenos, fazendo alusão às cinco chagas de Jesus Cristo. Cada um desses escudos contém (estava “contêm”, no original) cinco besantes de prata que, contando duas vezes os da quina do meio, recordam os trinta dinheiros pelos quais Judas vendeu Jesus Cristo e simbolizam o poder régio de cunhar moeda.

Reli e evitei tresler, numa contenção da parcialidade que me move. Não pude deixar de encontrar razões para ver na simbologia um puro anacronismo. Faz sentido apelar ao verde como sinal de esperança, quando somos geneticamente tão desesperançados no devir colectivo? E os campos verdejantes, agora que tanto se fala na desertificação galopante que avança desde o norte de África, que já alterou a paisagem alentejana e ameaça espalhar ainda mais aridez, esta imagem identificadora ainda faz sentido? Tal como o vermelho (encarnado, na versão sulista), apenas um repositório dos tempos idos em que houve gesta lusitana que se distinguiu pelos feitos históricos. Hoje, quem oferecia o peito às balas em nome da “pátria”, quem estava disposto a derramar o seu sangue pelo devir colectivo?

Se as cores não ilustram a pulsão nacional dos dias que correm, o resto da iconografia que aparece na bandeira é uma exibição do que já fomos outrora, não do que somos agora. Quando tanto se insiste na laicização do Estado, na bandeira permanecem símbolos que apelam à história do cristianismo. Como se houvesse um paralelo entre as cinco chagas de Jesus Cristo e a trajectória histórica da “pátria” – quando, bem vistas as coisas, essas chagas, e só no tempo presente, existem num avantajado múltiplo de cinco. A imagem dos trinta dinheiros que resultaram da venda feita por Judas, a metáfora para o “poder régio de cunhar moeda”, mergulha em dois equívocos. Primeiro, já não há poder régio há noventa e seis anos (é intrigante como uma bandeira que surgiu com o nascimento da república mantenha este ícone monárquico). Segundo, Portugal perdeu o poder de cunhar moeda com a entrada na União Económica e Monetária, a partir do momento em que uma moeda forte (o euro) passou a andar nos nossos bolsos em substituição de uma moeda fraca (o falecido escudo). Esse poder pertence a uma entidade exterior, o Banco Central Europeu.

Esta bandeira é um embuste. Terá, quando muito, significado para o que fomos outrora. Os especialistas da empresa de vestuário desportivo andaram no terreno e estudaram o que somos. Com o distanciamento da não afectividade, deram o sinal do que devia ser a bandeira da “pátria”: um pano preto, na monocromia da desesperança irreprimível. Um povo tristinho – e daí o fado e o fatalismo congénito – melancólico, saudoso do passado que só conheceu em relatos, receoso de olhar para os dias que vêm depois. Nem verde, por carência de esperança e por encolhimento dos verdejantes pastos; nem vermelho, à míngua do sangue que só heróis imaginários estão dispostos a jorrar pela “pátria”. O preto, cor bela, seria uma originalidade no concerto de bandeiras das nações.

15.3.06

Sintomas da gripe das aves nos humanos: estupidez emergente

Chego a casa para almoçar e dizem-me que acabaram de ver no noticiário que cada vez mais gente abandona os seus gatos. Alarmadas com informações de que o vírus da gripe das aves se transmite aos gatos, nem hesitam: porta fora com eles. Não interessa saber se há fundamento nos receios alarmistas difundidos por uma comunicação social sedenta em chafurdar na falta de rigor informativo.

Tudo terá começado com um gato que apareceu morto no norte da Alemanha. Um gato selvagem – que me seja desculpada a recusa em associar o adjectivo “vadio” a cães e gatos. Almas vadias são os ignaros que, à primeira oportunidade, provam o afecto pelos ditos “animais de estimação” com o abandono. Que interessa se o gato encontrado morto, no distante norte da Alemanha, era um gato sem dono, que errava pelas ruas à caça de alimento? Que interessa que tenha sido nessas circunstâncias que abocanhou um pássaro já doente, esquálido pelo vírus da gripe das aves que o consumia? Que interessa que os gatos domésticos raras vezes se aventurem fora de casa, sobretudo se forem gatos citadinos? Que interessa que esses gatos citadinos, encerrados no conforto da habitação dos seus donos, não tenham qualquer hipótese de contactar com aves, logo, de contrair o vírus?

Faz sentido o lugar comum do Homem como o único animal racional? O que fica provado é a falta de racionalidade quando o pânico se apodera do Homem. E fica demonstrado, mais uma vez, como essa racionalidade que, diz-se, é o esteio da superioridade do humano perante os demais animais, tem nutrido o mais aberrante espezinhar dos direitos dos animais.

Nem de propósito, ontem uma aluna perguntava se o Direito não reconhece os direitos dos animais. Estávamos a trabalhar nos direitos de personalidade espalhados pela Constituição e pelo Código Civil. Respondi que os códigos olham para os animais como coisas; e que às coisas não é possível atribuir personalidade. Não me coibi de discordar da fórmula legal. Como em tantos domínios, as leis sedimentam visões do mundo que estão para além de um conservadorismo démodé. Continuam a vingar, porque é mais cómodo o apaziguamento perante os usos estabelecidos do que mudar quadros mentais, com tudo o que essa mudança implica, como um forte abalo telúrico nas mentalidades.

Há uma vanguarda do pensamento bioético que advoga a atribuição de direitos aos animais. Um sector defende a extensão destes direitos apenas aos animais domésticos, por serem os que estão em convivência com os humanos. Por ter existido um fenómeno de socialização, entendem que estes animais são credores de alguns dos direitos de que os humanos gozam. Será a contrapartida do Homem pelo processo de socialização desses animais, por serem cauções do seu bem-estar pessoal. Outro sector, mais radical, argumenta que os direitos dos animais não devem olhar a distinções entre animais domésticos e animais selvagens. Todos os animais são merecedores dos mesmos direitos, por igual, sem discriminações. (Para um panorama sobre o assunto, ver o livro de Fernando Araújo, “A Hora dos Direitos dos Animais”, Almedina, 2003).

Na lamentável história do abandono maciço de gatos domésticos, nem sequer é necessário pôr em funcionamento estas teorias vanguardistas. Basta um mínimo de decência humana, alguma sensatez, o exercício da compaixão por animais que devem dizer alguma coisa aos afectos dos seus donos. Quando me dizem que tem havido um aumento do abandono de gatos domésticos, e que na rua são entrevistadas pessoas que respondem que sim, que equacionam atirar borda fora o gato que têm lá em casa, há uma súbita raiva que toma conta de mim. A raiva de continuar descrente na natureza humana, um pessimismo histórico que se adensa, a incógnita do futuro, na incerteza de perceber que desventuras de crueldade o Homem ainda será capaz.

É perante isto que tenho a tentação politicamente pouco correcta de, por exemplo, vedar direitos civis aos humanos sem discernimento para apurar a estupidez para que escorregam. E repetir um lugar comum: quanto mais dou conta que há pessoas assim, maior o afecto pelos animais. Há pessoas a quem o vírus das aves já se contagiou por simpatia, tanta a ignorância no alarme social que está montado.

13.3.06

E não se pode criticar a civilização ocidental? (Pontes entre J. C. Espada e Freitas do Amaral)

De vez em quando, a discordância com João Carlos Espada fala mais alto ao ler a sua crónica semanal no Expresso. Mas agora o respeitinho exige tratos de polé ao professor da Universidade Católica: o seu colega das económicas foi investido presidente da república e convidou-o para consultor político, com direito a visitas regulares ao palácio de Belém e notoriedade pública.

Se ignorar que há uma casta que se reclama um estatuto providencial, com mordomias que os colocam a acima de todos os mortais, nada coloca Espada acima das suspeitas. Ninguém lhe nega o direito à opinião; a mim custa-me ler Espada, sobretudo quando destila verdades inquestionáveis, do alto da sua objectividade que lhe permite planar sobre nós por ver as coisas com o discernimento que só está ao alcance dos predestinados. Aos predestinados, como o ministro dos negócios estrangeiros, o monopólio da verdade. Quem tiver a ousadia de dissidir, arremessa-se-lhes o rótulo de “ignorante” – que é o modo mais elegante, diria, mais diplomático, de matar uma discussão.

Espada não tem o desassombro de Freitas do Amaral. É verdade que os registos pessoais diferem: o embaixador do neo-conservadorismo distinguiu-se pelos escritos, não se lhe conhecem incursões televisivas; já o ministro dos negócios estrangeiros aparece de mais nos ecrãs da televisão com os seus olhos esbugalhados, no incómodo de ser abordado mais uma vez para o levar à retratação de declarações que só o próprio parece não perceber que foram, digamos, absurdas. Há um curioso fio condutor entre Espada e Freitas do Amaral: um veio da esquerda para se acomodar ao centro, o segundo partiu em digressão do centro para a esquerda; o primeiro estacionou, o segundo ainda vai a caminho de um lugar qualquer mais à esquerda.

Na sua última crónica, Espada conta que esteve em Washington com os gurus do neo-conservadorismo (Irving Kristol e a sua mulher Gertrude Himmelfarb). Os usuais pormenores que se dispensavam: Gertrude Himmelfarb é “Bea” para os mais próximos (Espada himself); o almoço anual da praxe, só os três, para sabermos que Espada é muito importante; os livros que leram durante o ano e “muito gossip”, que os académicos são comuns mortais e perdem-se na coscuvilhice; Espada fica alojado no local mais British de Washington, e que até os colegas do lado de lá do Atlântico o gozam com os seus tiques britânicos (e fica ao leitor a perguntar-se se acaso o Prof. Espada não nasceu com a nacionalidade errada).

Espada passa ao ataque, que é a melhor defesa das suas ideias. Denuncia uma certa perseguição intelectual ao que ele considera ser o património da civilização ocidental. Insurge-se contra um exército de intelectuais que criticam até à exaustão a civilização ocidental. Não compreende que sejam tantos os que desprezam os valores da liberdade e da tolerância e queiram mudar o rumo dos acontecimentos, pudessem eles (os críticos) alguma vez chegar ao altar do poder. Para Espada, a classe política que se perpetua no poder é o garante da civilização ocidental tal como a conhecemos. São eles o seu penhor, o nosso penhor. Contra as investidas do subjectivismo, do relativismo e de outros desvios que são atentados contra os valores da civilização ocidental, para Espada valores inquestionáveis.

Não sei o que me custa mais: se discordar de Espada e ser metido no mesmo saco de Noam Chomsky e aliados, mesmo sabendo que nada das ideias dos Chomskys colhe a minha simpatia; se repudiar as ideias dos detractores do capitalismo e da globalização significa um imediato entrincheirar ao lado de Espada. Entre os dois mundos, sinto-me mais próximo daquilo que Espada chama civilização ocidental. Ainda que sejam vários os aspectos em que não me revejo: a devoção do Estado, a exigência do indivíduo ceder perante o colectivo, a privação de liberdades individuais quando alguém ajuíza que valores fundamentais estão em perigo, o militarismo que estende a sua mão interventora por todo o planeta onde haja focos de instabilidade, uma vocação universalista de pacificação mundial, a convicção da superioridade civilizacional.

Os cultores deste mundo tão perfeito e ao mesmo tempo asséptico deviam perceber que o mundo não é como o idealizam. Não podem extirpar os males que vão levando o mundo por rumos que não coincidem com as suas preferências. Quando Espada e acólitos discordam dos que estão na linha da frente contra a civilização ocidental, estão no seu direito. Como, do outro lado, os detractores estão no seu direito de manifestar a dissidência.

No melhor pano cai a nódoa, não deixa o aforismo que nos esqueçamos. Fico perplexo quando os cultores da Liberdade (assim, com maiúscula) se coçam incomodados com a urticária provocada por aqueles que pensam de maneira diferente. Parece que a tolerância que pregam é teoria oca. E que a incoerência lhes prega uma partida. É nestas alturas que percebo que Chomsky e afins têm que existir.

10.3.06

Padecimento do complexo VPV

Por estes dias uma tempestade desabou sobre a minha cabeça. Tenho ouvido interrogações como “se não gostas de fulano, gostas de quem?”, ou retumbantes sentenças como “és tão negativista”. À interrogação não sei dar resposta senão dizer “ninguém”. Ao devastador juízo de valor, à forma de ser que exala um estado permanente de crítica com laivos destrutivos, apenas total concordância.

É nestas alturas que dou conta do complexo VPV (Vasco Pulido Valente) que tomou conta de mim. Longe de mim querer rivalizar com a destreza do opinion maker. Sirvo-me dele apenas para tentar perceber o que circula nas minhas veias. Ao ler VPV noto um desconforto do tamanho do mundo, com as coisas e as pessoas. Um fel destilado de forma impiedosa, caricaturas demolidoras de quem se põe a jeito para as suas crónicas. Não há artigo de opinião escrito por VPV que elogie, aplauda, pinte o mundo de outra cor que não os matizes do cinzento e do preto. A forma é atractiva. Escreve como poucos, é singular na expressividade da mensagem.

Muitas vezes concordo com o retrato lancinante de VPV. Identifico-me com o negativismo militante, pelo logro das ilustres personalidades que teimam em gravitar na órbita do poder, dos negócios, da educação da opinião pública, enfim, do estrelato mediático. E, apesar da identificação substancial, cansa-me ler VPV por sentir que do mundo hermético que edificou para a sua vivência olha cá para fora e vomita o fel de quem se abespinha por tudo andar mal.

Repenso o que escrevo por aqui. O tom de crítica áspera, a impressão de que não há coisas ou pessoas para enaltecer, a teimosia em rejeitar a existência de heróis que sejam inspiradores. Revejo textos que misturam crítica destrutiva com sarcasmo. E tento, por um momento, sair de mim mesmo, simular que sou alguém que lê esses textos assinados por mim. Compreendo o cansaço de outras pessoas ao verem o débito de críticas, de lugares de desidentificação, de cultura do nada, um niilismo exacerbado e exasperante.

Há algo de intrigante neste exercício. Quando escrevo deixo-me entusiasmar pela febre do momento e a escrita sai fluida e veloz. Releio os textos antes de os tornar definitivos. A releitura permite encontrar erros, corrigir o estilo, cortar aqui e ali, acrescentar o que foi esquecido ao correr das teclas, repensar ideias vertidas no texto. Quando regresso a certos textos já apascentados pelo amadurecimento do tempo, não me revejo neles. Não que a opinião seja volátil. Muitas vezes são as fórmulas encontradas para criticar que despertam o incómodo. Sinto-me apoderado da mesma impaciência quando acabo de ler uma crítica arrasadora de VPV.

O que me apoquenta não é o estorvo causado nos outros. Não que eles deixem de importar, sobretudo a opinião das pessoas queridas, entre família e amigos. Num exercício de ensimesmamento, inquieta-me o desconforto que o que escrevo provoca em mim mesmo. Por vezes há a tentação para renegar o que foi emoldurado na escrita passada. Não o faço pelo metódico princípio de rejeitar refazer o passado. Há textos que se explicam pela conjuntura do momento: um estado de espírito especial, a má disposição do momento que traz para fora toda a lava comprimida, às vezes meros exercícios de retórica, outros ensaios que tentam alcançar um resultado qualquer através da espontaneidade das palavras que se somam linha após linha.

No diagnóstico da maleita, percebo que esta não é maneira mais tranquila de olhar para as coisas. Abre as portas a uma angústia que se repete, a angústia do descontentamento com o que os ponteiros do relógio oferecem. E a angústia mais alta da tentação de refazer o que foi escrito e já tem o cimento do tempo. Pela constrição de chegar a uma encruzilhada e não me identificar com textos passados, o que sou pela escrita que exponho. Só não percebo se isto será a antítese do narcisismo, ou a maneira de dar a volta por outro lado para chegar até ao narcisismo por um caminho que julgo ser a antítese do narcisismo.

9.3.06

Epitáfio sampaísta

E eis que chega ao fim o consulado de Sampaio. Dobra-se a página de um presidente que foi um equívoco, como equívoco é o país que presidiu. Um esclarecimento: não tenho, nunca tive, a mínima simpatia pessoal pela personagem. É daquelas embirrações que têm uma grande dose de irracionalidade. Quando não se gosta sem saber explicar porque não se gosta. No caso do presidente que hoje passa o testemunho, dez anos de consulado desnudaram a personagem. O que era antipatia irracional ganhou as cores da razão.

No ponto final da longa página sampaísta, os comentadores andam entretidos nos balanços. Para além de serenidade e incontornável, há uma palavra cara à figura que a partir das dez horas da manhã deixa de ser presidente e que resume as análises: consensualidade. Os comentadores são consensuais nos elogios a Sampaio. Uns, mais entusiastas, ou não viessem da família política de onde ele partiu para o estrelato presidencial. Até alguns opinadores mais situados à direita afagam a personagem. Ainda não percebi com que propósito: se serão elogios sinceros, apesar de discretos e sem a exaltação dos que o aplaudem; se apenas um acto de misericórdia, como quem diz “agora que partes vou dizer bem de ti”.

Não tenho o arcaboiço para laudatórios em momentos de despedida. Nem consigo trair a impenitente antipatia pela figura; não será por estar de partida que vou passar um borrão pelas indigestões passadas. Aliás, se existe algo de bom, é a abalada de Sampaio. O presidente que sempre procurou consensos quando só avançamos se fizermos rupturas. Sempre na linha da frente como supremo árbitro dos conflitos políticos, mas sempre hesitante, nunca dando provas de ser confiável. O mais emotivo dos presidentes, relembram alguns, no esboço de uma quase hagiografia. Não foi um presidente emotivo; foi um presidente choramingas, arrebatando as simpatias de velhinhas e adeptos de comédias românticas, lacrimejando fácil quando a emoção saltava de um caldo fervente. Sampaio, imortalizado pela covardia – e quem se pode esquecer da montagem hollyhoodesca da visita a Nelas, porventura temendo que os habitantes de Canas de Senhorim lá fossem exigir-lhe o escalpe.

E depois há o Sampaio dos discursos redondos, herméticos, ininteligíveis, prenhes de incursões paralelas e inversões de marcha, frases intermináveis. Num dia destes abri uma excepção, eu que já tinha há muito perdido a paciência para escutar com atenção as prédicas presidenciais. Escutei-o e voltei a escutá-lo, no mesmo discurso, num noticiário tardio. Numa das longuíssimas frases que pontuam os seus discursos, fiz cálculos mentais: essa frase teria quinze linhas. Quinze linhas sem um único ponto final, na ilustração perfeita da langue de bois que é o sampaiês, uma espécie de dialecto que ensaia o português. (Será defeito meu: no afã de escrever frases curtas, perturbo-me quando o não consigo. Ainda que as minhas frases mais longas nunca ultrapassem um terço da dimensão média das frases do sampaiês, cheias de vírgulas e mais vírgulas, travessões e parêntesis curvos e rectos…)

Num cargo que tem pouco mais do que honorífico, Sampaio exerceu bem o papel de mestre-de-cerimónias. Na distribuição de comendas, bateu recordes. É quase como o Benfica, que procura corpos que ultrapassem a população portuguesa para se vangloriar de ser a agremiação com mais adeptos. A Sampaio faltam cidadãos suficientes para a orgia de comendas. Se o frenesim de medalhas já era nota distintiva, quando deu conta que as folhas do calendário para a despedida da sinecura rareavam entrou na fase efusiva das condecorações. Parece uma extra-unção com efeitos invertidos: ele é o sujeito ungido, agora que se aproxima o fim do mandato, mas unge os agraciados em sinal de adeus. Facilitava a função se atribuísse uma medalha a Portugal inteiro.

Sampaio conseguiu alcançar o que julgaria impensável: o pior presidente da era democrática. Pior que Soares e Eanes, é registo pouco invejável. Parte e não me deixa saudades. Já prometeu que vai continuar atento, como cidadão responsável que é, numa militância activa da cidadania. É direito que não lhe pode ser negado. Oxalá houvesse o convencimento de que é chegado o tempo de ir a banhos e termas, no repouso que é merecido apenas e só porque, finalmente, abandonou o cadeirão presidencial.

8.3.06

No dia internacional da mulher, a modernice dos “homens a dias”

É uma atarefada executiva com pouco tempo disponível para as lides da casa? Chega ao fim do dia extenuada pelas responsabilidades do exigente e intenso trabalho intelectual? A vida social, que faz gala em manter, agenda jantares em sua casa a meio da semana, mais um motivo de preocupação para a sua vida preenchida pelo stress? Afaste as preocupações do horizonte. Uma empresa presta-lhe todos esses serviços (e outros mais?), com o insólito dos serviços terem um cunho…masculino.

Não são escolhidos pela beleza física, mas impressionam qualquer mulher. Prendados, habilidosos na cozinha e imbatíveis nas pequenas reparações domésticas, os «Maridos-a-dias» (…) começam a impor-se em Portugal e estão a ganhar terreno às clássicas «fadas-do-lar»”.

Eles são como os bombeiros, treinados para acorrer a vários fogos. Preparam repastos que encantam os convidados das senhoras sem tempo ou paciência para a tarefa. E não deixam nada ao acaso: mudar uma lâmpada fundida, reparar a dobradiça de um móvel que esteja desarticulada, pequenas reparações aqui e ali, em coisas que, de outro modo, ficam anos a fio penduradas na agenda das “coisas a compor num dia destes”. No aforismo popular, são “pau para toda a obra”.

Uma advertência, para afastar juízos precipitados: nada contra a modernice dos “homens a dias”. A mania das tarefas que cabem à mulher e das que apenas são mister do homem é um dos alicerces da desigualdade que tem persistido ao longo dos tempos. É verdade que me incomodam as efervescências feministas que ambicionam impor, à força, uma igualdade de sexos que não passa de uma impossibilidade; e também me repugnam atitudes muito másculas que continuam a fazer uma separação simplista do mundo, aquilo que compete à mulher como as tarefas que um homem que se preze não deve abraçar.

O tempo passa e as mentalidades evoluem, para o bem e para o mal (com toda a carga subjectiva que a asserção carrega). A ancestral tradição de quase escravizar a mulher é um anacronismo. Um museu de hábitos passados, infelizmente ainda repetidos por certos exemplares que teimam em viver deslocados do tempo. Machistas e marialvas, fazendo garbo da sua condição masculina, como se houvesse uma superioridade testicular, como se os acrescentos genitais dessem cobertura à ascendência do homem sobre a mulher.

As gerações sucedem-se e os hábitos ancestrais vão-se diluindo. Hoje os homens vão com gosto redobrado para a cozinha. Ao fim de algum tempo distinguem-se delas pelos atributos culinários (que isto não seja aproveitado pelos saudosos do marialvismo para concluir: eis mais uma prova de como o homem é superior à mulher). Na complexidade da vida moderna, em que homem e mulher trabalham e têm jornadas diárias com idêntico grau de cansaço, é prova de falta de inteligência insistir numa concentração das tarefas caseiras na mulher. Por se tratar de uma sobrecarga de trabalho que pesa sobre elas. E por ser paradoxal, se for olhado pelo prisma dos homens que ainda pensam que essas tarefas não lhes estão destinadas: se eles mantêm que a mulher é o sexo fraco, como explicam que à parte mais fraca esteja reservado um acréscimo de funções e mais cansaço?

A iniciativa dos “homens a dias” não é apenas uma engenhosa maneira de uma empresa se destacar no mercado, chamar a si uma vasta clientela, abrir as portas do sucesso. É um sinal dos tempos. As mulheres que se socorrem destes serviços têm uma compensação extra: são gabadas pelos convidados, deliciados com a forma de receber. Em boa verdade, parece que as consumidoras do serviço recebem outra compensação, diria, escondida: “Foi óptimo, sabia fazer um bocadinho de tudo e ficou tudo muito bem feito. Quando chegou a hora do jantar vestiu um grande avental e serviu à mesa com distinção”, testemunhou uma das adeptas do serviço. O que me deixa com a pulga atrás da orelha é aquela parte em que ela confidencia que “sabia fazer um bocadinho de tudo” e que “foi óptimo”. Para ler nas entrelinhas, ou apenas uma mente perversa a dar azo à imaginação?

No dia internacional da mulher, a minha singela homenagem. Que elas não sejam exageradas na ambição, até porque não há um dia internacional do homem (do homem, não do Homem). Sinal da discriminação positiva que entrou no catálogo do discurso politicamente correcto. Há dias, a outra metade da sociedade conjugal lançou o isco: “não terás que me dar uma prenda no dia internacional da mulher?” A coisa resolveu-se de forma pacífica: os outros 50% da sociedade conjugal são a melhor prenda que ela teve na vida. Com a vantagem de ser uma prenda quotidiana…

7.3.06

Umbiguismo fremente

Traços de personalidade que são hostis. Traços indesejados na própria personalidade. E, porém, ao parar no tempo para a introspecção periódica, é a angústia que cresce ao sentir que alguns desses traços, tão repudiados, pairam sobre a personalidade que foi sendo construída. Saber que somos algo que rejeitamos ser. Ou pelo menos desconfiar que o caminho percorrido cimentou algumas dessas características vituperadas. A perplexidade de uma localização pessoal pouco prazenteira. Às vezes é como se, elaborada a introspecção, desse comigo a não gostar de quem sou.

Pode ser erro de análise. Ou apenas inútil desgaste de tempo, perdido nos meandros do insondável que busca o ser que habita em mim. Esse é um trajecto necessário: mapear os passos dados no outrora que ficou emoldurado, olhar no espelho com os olhos de quem olha de fora. Exigente exercício, como se fosse possível sair de mim mesmo e observar-me do exterior. Fazer o que é habitual na apreciação dos outros, agora na exegese do eu visto de fora, pelo mesmo eu que se auto-analisa.

Tarefa sem sentido, ou apenas um umbiguismo que lateja com violência, noutro registo de algo que procuro não ser. Afogueado pelo individualismo metódico herdado das influências, das leituras, uma interrogação: se não me perco para além dos limites do individualismo e entro em terrenos que ensimesmam o ego. Ego tão combatido, para não resvalar para egocentrismos que noutros são vistos como matéria abjecta. Dou comigo na encruzilhada do que sou, por algo que evito ser.

E começa a espiral, uma extenuante tempestade cerebral: aclarar pequenos sinais, atribuir-lhes significado, cozer as pontas de um descomposto puzzle para perceber o quadro no seu conjunto, já articulado. Insistentemente, desconstruir o quadro decifrado, pelos sintomas de desconforto que trouxe. Partir em nova demanda, reinterpretar sinais já amadurecidos, lê-los por outro ângulo. Tentar que o novo quadro, o produto da reinterpretação, seja mais risonho na introspecção que fermenta. Quando o resultado traz uma sensação de alívio, a percepção de que o percurso feito me colocou onde estou não por acaso, um novo dilema: as tentativas que se sucedem, sempre em demanda de um mapa interior tranquilizador, serão apenas um ardil? Apenas uma busca incessante que alimenta a auto-satisfação, e só porque exercícios anteriores sussurraram o descontentamento com o quadro pincelado?

Um caminho armadilhado, cheio de encruzilhadas traiçoeiras, alçapões que sufocam na queda surpreendente que provocam. É quando o caminho entrou na quietude de uma planície que os buracos escondidos na relva densa causam as decepções mais dolorosas. As decepções que emergem no restolho do auto-diagnóstico. Haverá razão: a busca pela perfeição, sabendo à partida que a perfeição é do domínio das entidades deificadas, não dos homens perenemente manchados pela insuficiência dos actos. A ambicionada e inalcançável perfeição traz a perturbação. Não haverá acções premeditadas na sua imperfeição. Os resultados podem-se afastar dos objectivos, fazer confundir o diagnóstico e toldar a perfeição. Nesse momento o Homem desfaz-se na sua pequenez, incapaz de perceber que os actos perfeitos estão longe da sua conduta.

Não sei se a leviandade recompensa. Não sei se a sensatez é um espartilho, uma guilhotina que lanceta o bem-estar de quem se perde nos descaminhos da busca do eu desavindo. Há momentos em que o mundo parece um lugar estranho. Apetece reduzi-lo ao lugar onde se dá o refúgio do eu, com as poucas pessoas que personificam a pertença individual. Fora disso, um imenso deserto a que não apetece pertencer, na contínua desidentificação com os tonitruantes gritos do que está lá fora. Nem assim sossego: atiro para fora de mim as culpas dos traços que o espelho implacável desnuda de mim mesmo. Uma demissão que obriga a regressar ao ponto de partida. Descontente com as conclusões, mais um exercício de redefinição das coisas e de mim perante elas. Mais um esforço para descobrir ilações sem o travo amargo do dissabor. Uma construção inacabada.

6.3.06

Covardia e avareza: “Match Point”, de Woody Allen

Nos filmes de Woody Allen agrada-me o humor subtil e, ao mesmo tempo, devastador, as cenas peripatéticas em que não hesita em expor-se ao ridículo. Como nada existe perfumado pela perfeição, há um senão na filmografia de Woody Allen: a vivência judaica que tanto o influencia, diria que um preconceito que se mistura com o orgulho que os judeus têm em serem judeus.

“Match Point” é a antítese dos filmes de Woody Allen. Primeiro, porque se refugia na condição de realizador. Segundo, este filme inverte os padrões habituais de Woody Allen: o que há habitualmente de bom está ausente (o humor refinado), o que não é bom sinal; o que me desagrada (num registo pessoal de antipatia com a mundivência judaica) está também ausente, o que acaba por ser uma boa notícia. Terceiro, a história não se passa em Nova Iorque: retrata Londres, a alta burguesia com os seus hábitos tão “very british” – os “clubs”, os fins-de-semana no palacete perdido no meio do campo, as caçadas, o álcool a rodos que tira o verniz às pressurosas mães de família.

No início de “Match Point” passam imagens de uma bola de ténis disparada de um lado para o outro do campo, a câmara fixada na rede. O narrador disserta sobre a sorte. Convoca o espectador para o auge da sorte quando a bola acerta na tela branca que encima a rede; nesse momento a imagem fica congelada, a bola parada uns centímetros acima da rede, sem saber para que lado vai tombar. Nesses momentos em que a imagem e a bola estão retidas no tempo, o narrador questiona o devir da sorte. A força imprimida à bola, ou o vento que sopre numa certa direcção, hão-de empurrá-la para um dos lados da rede. É a diferença entre o ponto contabilizado para quem disparou a bola ou para o adversário. Um simples momento define o destino – de um jogo, de uma vida. Este é um filme sobre a arte da sorte, de como tantos vingam pelos encontros fortuitos com a sorte.

Um professor de ténis, cansado do ténis de alta competição, começa a dar aulas num clube com direito de admissão muito reservado. Um dos primeiros alunos integra-o na família, pela coincidência de gostos musicais (ópera e música clássica). Tornam-se amigos e partilham interesses. O protagonista cobiça a namorada do seu amigo – outra atracção do filme, para quem gosta do género: Scarlett Johansson. A sorte bate-lhe à porta de outra forma: a irmã do amigo cai de amores por ele e, como compensação das atenções pela menina, o endinheirado pai abre-lhe as portas das empresas. Sobe vertiginosamente na hierarquia, com as mordomias que compram a sua lealdade.

Habitua-se à prosperidade que caiu do céu. E à vida rotineira e desinteressante ao lado da mulher com que se casou, a mulher que lhe abriu as portas da abastança. O dilema chega-lhe quando a antiga namorada do cunhado passa a ser sua amante. A relação tórrida tolda-se quando ela lhe comunica a gravidez – indesejada para ele, para ela o motor da mudança para a vida das personagens do triângulo amoroso. A amante pressiona-o a contar a verdade à legítima, ele que lhe faz promessas de querer viver ao seu lado. A dúvida tortura-o, porém. Dividido entre a luxúria da relação com a amante e a tranquilidade e o bem-estar material do casamento. Acaba por resolver o dilema, dando voz à covardia misturada com a sua avareza irreprimível. Encena um crime que sacrifica a vida de uma vizinha da sua amante e da própria amante.

Um crime bem congeminado: simula um roubo como motivo do assassinato da velha vizinha. Quando se desfaz dos despojos do roubo, junto ao Tamisa, o grosso anel fica a tilintar no bordo da protecção que separa o rio do passeio. A imagem fica parada, por uns instantes. Sem saber se ao anel se vai perder no fundo lamacento do Tamisa, ou cair para o passeio. A diferença entre apagar todos os vestígios do crime e deixar uma pista que o podia denunciar. A diferença entre continuar a vida cheia de luxo e a desdita do cárcere. As imagens voltam ao movimento: o anel cai em terra firme. O espectador adivinha que o covarde avarento há-de ser apanhado pela Scotland Yard. Mas, no que tange à sorte cozinhada com o destino, há voltas intrigantes. O anel foi encontrado por um toxicodependente que, mais tarde, foi morto numa rixa perto do local onde o protagonista assassinara a velha e a amante. O crime ficou resolvido: foi o drogado que arcou com as culpas dos assassinatos. A bola, que ficou a saltitar no rebordo da rede, tinha caído para o lado certo. O match point foi resolvido a favor do covarde avarento.

A melhor maneira de abordar um filme de Woody Allen é a sátira, sem que a abordagem signifique o apoucamento do realizador. Os filmes de Woody Allen encerram um convite para o espectador parodiar a história, em jeito de mensagem descodificada: “não me levem a sério”. A mensagem subliminar, que existe, confunde-se com a forma despretensiosa com que Allen olha o mundo. Quando saí do filme, covardia e avareza foram as palavras que sintetizam o argumento. Isso e a certeza de que este é um filme que deve assustar homens que fazem carreira no adultério e outros que se candidatam à performance.

3.3.06

Contra-terrorismo fiscal

Não gosto de pagar impostos. É coisa que me põe doente, à beira da apoplexia. É a custo que preencho a declaração do IRS. Sempre à espera de chegar à simulação, na ânsia de saber o montante da devolução, afinal a percepção de que andei onze meses a descontar dinheiro a mais, um empréstimo forçado ao Estado. Este ano, por causa da venda da casa, tenho o imposto de mais valias à perna. A administração fiscal adverte, em tom filantrópico, que “apenas” conta metade do valor da mais valia. Resta dizer que sobre o valor restante o contribuinte paga uma taxa de imposto de 25%!

As nuvens negras acastelam-se. Habituado a receber um reforço de rendimento com a devolução dos impostos pagos em excesso, este ano tenho a posição invertida: de credor passo a devedor. Como não quero arriscar a humilhação de ter o nome desvendado nas listas que o fisco vai divulgar – com os nomes dos cidadãos que têm impostos em falta – vou pagar. Nem quero pensar no dia da assinatura do cheque. O melhor é pedir à cara-metade para preencher o cheque.

De repente, sou assaltado por pensamentos perversos. Vejo nos impostos um roubo à propriedade privada, um atentado ao esforço do trabalho, um furto aos proventos que resultam da iniciativa individual. Reitero a ideia: o Estado cobrador de impostos é um Estado-ladrão. Por isso é que das maiores ambições que tenho é assentar vida no Mónaco, para não ter que prestar contas ao fisco de quanto ganho com o meu trabalho. Regresso aos pensamentos perversos que me invadem. Para quem vê o Estado como o ladrão do suor do trabalho, a actividade fiscal é uma forma escondida de terrorismo de Estado. Um terrorismo sem ter esse nome, porque somos educados (diria, formatados) na resignação de quem paga impostos por achar que é o preço de viver em sociedade, a factura necessária da civilização e da modernidade tão aprazíveis.

Na esteira da doutrina do ministro dos negócios estrangeiros, coloca-se a hipótese do contra-terrorismo fiscal. Passo a explicar a analogia. O Prof. Diogo opina, com a maior das naturalidades, que os fundamentalistas islâmicos têm todo o direito de protestar com a violência inusitada que é conhecida. O Prof. Freitas considera que fomos nós, ocidentais, que agredimos em primeiro lugar. O Prof. Amaral, do alto da sua sapiência catedrática que não admite contestação (pela catedrática condição que o eleva ao pedestal da verdade absoluta), conclui o espantoso raciocínio reconhecendo que os agredidos têm o direito de ripostar com violência. (O Prof. Diogo Freitas do Amaral só ainda não soube esclarecer quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha: falta-lhe espetar a estaca que marca o início das hostilidades, para se perceber quem agrediu primeiro e se os ofendidos, por o serem, merecem condescendência pela reacção carregada de ódio e violência.)

Partindo do pressuposto que o Prof. Diogo tem sempre razão – não esquecer, é a catedrática veste – incorporo a tese e estico-a aos impostos. E delicio-me com a hipótese de milícias anti-impostos, constituídas por activistas militantes que se sentem ofendidos com a ditadura fiscal que os sufoca. É a tese do Prof. Freitas em todo o seu esplendor: os que se consideram espoliados pela mão abusiva do fisco são os agredidos; como ofendidos merecem reagir – sob pena de a democracia se açambarcar na unilateral distribuição de prebendas –, utilizam os meios necessários. Mesmo que aos olhos dos moderados os meios sejam desproporcionados.

As milícias espalhariam o terror pelas repartições de finanças. Os cobradores de impostos, os zelosos e antipáticos funcionários das repartições de finanças, jamais teriam descanso. De nada valia alegar a sua inocência, eles que são meros agentes ao serviço do terrorismo do Estado enquanto gatuno do esforço alheio. Esses funcionários levam a peito a arte de ceifar a evasão fiscal. São anti-corpos que levam a má notícia do roubo de património em nome dessa coisa inexistente que se chama igualdade, alcançada através da miragem da redistribuição de rendimentos através dos impostos. O velho aforismo comunista: os ricos que paguem a crise.

Na exaltação do contra-terrorismo fiscal, quem se arregimentasse nas milícias seria remetido à vida clandestina. Com treino militar de excelência, para o êxito da destruição paulatina da máquina fiscal do Estado. Para recuperar o dinheiro cobrado a título de impostos. Não se pode usar a palavra “roubo”, porque se trata de reaver o que já antes tinha sido roubado. (O destino da maquia recuperada é coisa que a imaginação do momento não conseguiu dar resposta). O ministro das finanças seria a pessoa com a maior entourage de gorilas protectores, a figura mais apetecível do contra-terrorismo fiscal. Na esperança que o movimento fosse recebendo mais e mais simpatia entre a população, afinal ciente que as milícias anti-impostos existem para defender os contribuintes dos roubos perpetrados pelo fisco.

De regresso à realidade, para observar a beleza do socialismo. Há impostos por tudo e mais alguma coisa. Até quando alguém morre, o património deixado aos sucessores se põe a jeito para a manápula cleptomaníaca do fisco. Da minha experiência de modesto proprietário de um apartamento revendido para comprar outra habitação, fica uma lição de vida: ser proprietário – ainda que de uma modesta habitação, afinal o luxo de ter um tecto para viver – é uma extravagância, medidas as alcavalas que o Estado exige (impostos: de selo, IMI, IMT, mais valias quando se dá o caso da revenda gerar um lucro – maldito mercado que revaloriza as casas, para gáudio do gordo fisco; mais os exorbitantes custos dos registos). A lição é esta: nas entrelinhas, o generoso Estado desaconselha-nos da condição de proprietário. Antes arrendatário e não ter que pagar a quantia gorda para todos aqueles impostos.