O fornecedor de equipamentos da selecção nacional de futebol fez mudanças cosméticas nas roupagens, o que tem causado algum alvoroço. Quando os bravos pleiteadores da bola entrarem nos estádios alemães para medirem forças com mexicanos, angolanos e iranianos (pelo menos), vão envergar um equipamento todo vermelho. Desapareceu o verde dos calções, que completava a alusão perfeita do vestuário à gloriosa bandeira nacional. É no equipamento alternativo que a mudança tem o perfume de uma revolução: todo preto.
Já li manifestações de incómodo com a opção da multinacional dos equipamentos, qual ditadora entidade que calcou as tradições e a simbologia da “pátria”. Os mais desconfiados confirmam, com o episódio, que a globalização é um furacão devastador que leva tudo por diante – até as cores que identificam uma “pátria”. Outros, menos propensos à conspirativa teoria, ficam-se pelo desgosto pessoal ao verem a nova paleta de cores dos equipamentos. Caldeiam-no com estranheza pelo desaparecimento do verde, por um equipamento todo negro quando os nossos não puderem entrar em campo de camisola vermelha. Vêm na mudança o rasto perdido da simbologia nacional. Como se fossem as camisolas que traduzem a destreza dos praticantes ou houvesse um cabalístico receio de que novas vestimentas afastem as vitórias.
Confesso a ignorância da simbologia da bandeira nacional. Que me lembre, foi matéria nunca ensinada nos bancos da escola. Assunto que não tinha despertado a minha curiosidade, até hoje. Vivi apaziguado com a consciência, na ignorância da simbologia nacional. Há coisas mais importantes. Perante o incómodo de algumas pessoas, fui em demanda das razões da bandeira vermelha e verde com escudo armilar. O resultado da pesquisa foi este:
Reli e evitei tresler, numa contenção da parcialidade que me move. Não pude deixar de encontrar razões para ver na simbologia um puro anacronismo. Faz sentido apelar ao verde como sinal de esperança, quando somos geneticamente tão desesperançados no devir colectivo? E os campos verdejantes, agora que tanto se fala na desertificação galopante que avança desde o norte de África, que já alterou a paisagem alentejana e ameaça espalhar ainda mais aridez, esta imagem identificadora ainda faz sentido? Tal como o vermelho (encarnado, na versão sulista), apenas um repositório dos tempos idos em que houve gesta lusitana que se distinguiu pelos feitos históricos. Hoje, quem oferecia o peito às balas em nome da “pátria”, quem estava disposto a derramar o seu sangue pelo devir colectivo?
Se as cores não ilustram a pulsão nacional dos dias que correm, o resto da iconografia que aparece na bandeira é uma exibição do que já fomos outrora, não do que somos agora. Quando tanto se insiste na laicização do Estado, na bandeira permanecem símbolos que apelam à história do cristianismo. Como se houvesse um paralelo entre as cinco chagas de Jesus Cristo e a trajectória histórica da “pátria” – quando, bem vistas as coisas, essas chagas, e só no tempo presente, existem num avantajado múltiplo de cinco. A imagem dos trinta dinheiros que resultaram da venda feita por Judas, a metáfora para o “poder régio de cunhar moeda”, mergulha em dois equívocos. Primeiro, já não há poder régio há noventa e seis anos (é intrigante como uma bandeira que surgiu com o nascimento da república mantenha este ícone monárquico). Segundo, Portugal perdeu o poder de cunhar moeda com a entrada na União Económica e Monetária, a partir do momento em que uma moeda forte (o euro) passou a andar nos nossos bolsos em substituição de uma moeda fraca (o falecido escudo). Esse poder pertence a uma entidade exterior, o Banco Central Europeu.
Esta bandeira é um embuste. Terá, quando muito, significado para o que fomos outrora. Os especialistas da empresa de vestuário desportivo andaram no terreno e estudaram o que somos. Com o distanciamento da não afectividade, deram o sinal do que devia ser a bandeira da “pátria”: um pano preto, na monocromia da desesperança irreprimível. Um povo tristinho – e daí o fado e o fatalismo congénito – melancólico, saudoso do passado que só conheceu em relatos, receoso de olhar para os dias que vêm depois. Nem verde, por carência de esperança e por encolhimento dos verdejantes pastos; nem vermelho, à míngua do sangue que só heróis imaginários estão dispostos a jorrar pela “pátria”. O preto, cor bela, seria uma originalidade no concerto de bandeiras das nações.
1 comentário:
Se não te conhecesse diria que és um benfiquista com naturais problemas de digestão.
Não concordo nada contigo!
A bandeira é um símbolo. As razões para as cores acabam por ser irrelevantes... podemos ser criticar estas ou outras razões. O importante é o que representam: a nossa identidade como povo. Confesso que ainda sinto um arrepio quando vejo a nossa bandeira subir ao ponto mais alto numa competição. E não acredito se disseres que te é indiferente!
Quanto à bandeira preta... talvez o presidente do Benfica compre a ideia.
Ponte Vasco da Gama
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