Tem causado incómodo a decisão do governo canadiano de deportar os imigrantes que não legalizaram a sua situação. É assunto que tem feito correr tinta entre nós, dado que os portugueses são uma comunidade numerosa entre os imigrantes canadianos. Contam-se histórias lavadas em lágrimas, pessoas que já vivam há largos anos no Canadá, aí estabeleceram as suas vidas, compraram casas e automóveis, já se sentiam integrados na comunidade local. E como lhes foi fixado um prazo curto (quinze dias, ouço no testemunho de uma pessoa que acaba de regressar aos Açores) para deixarem o Canadá.
Estive em Toronto em 2000. O que me impressionou mais? O caldo de etnias que fervilhava nas ruas. Em reforço do carácter multi-étnico do Canadá, cartazes em autocarros, no metro, em outdoors, com um apelo em letras garrafais à entrada de imigrantes. Os cartazes retratavam pessoas de diversas etnias e continham um convite: “traga os seus familiares. Eles são bem-vindos ao Canadá”.
Numa das disciplinas que ensino, há um tema que toca levemente o problema da emigração. Explico que se tem enraizado a tendência dos países ricos aliciarem os países pobres com regalias comerciais se estes conseguirem travar os fluxos migratórios que desaguam nos países que desfraldam um mundo de oportunidades. É a perversidade de trocar pessoas por coisas: ou de como os países ricos encontraram solução para travar a entrada maciça de imigrantes que chegam de países pobres, prometendo abertura de mercados aos bens oriundos dos países pobres se as respectivas autoridades souberem pôr um travão na saída de pessoas. Costumava apresentar a excepção do Canadá. Dava o testemunho pessoal, as sensações de Toronto, para mostrar que há um país que se recusa a entrar na estratégia de trocar mais regalias comerciais por menos fluxos migratórios. As orientações do novo governo canadiano obrigam-me a rever a exposição.
A comunicação social mostra uma relação de causa e efeito: as restrições à imigração ilegal são a imagem de marca do novo governo, um governo conservador. Não caio na esparrela de marcar posições de forma tão simplista. Infelizmente, a comunicação social é, hoje, pródiga na militância de causas e menos nos relatos imparciais e rigorosos. Não importa indagar as razões que levaram o governo conservador canadiano a ser inflexível com os imigrantes ilegais. O que importa é passar a mensagem que a mudança de cor política trouxe uma nova orientação na política de imigração, a inflexibilidade.
Note-se bem, não estou a salvar a face dos conservadores canadianos. Se eles têm a mesma marca genética dos conservadores vizinhos dos Estados Unidos, estou quase nos antípodas. Apesar disso, custa-me ler os sinais codificados enviados pela comunicação social, como se nos tratasse de intoxicar. Uma intoxicação com predicados pedagógicos: sejamos incautos que compram tudo o que é veiculado pela comunicação social e depressa estamos a ser educados por ela, a embarcar nas mesmas causas que arregimentam a sua militância.
No meio da polémica, ainda não vi ninguém a parar para reflectir: quem está a ter ordem de deportação são pessoas que nunca legalizaram a sua situação. Imigrantes ilegais. Pode-se acusar o novo governo canadiano de insensibilidade ao dar conta que há imensas pessoas que não têm a sua situação regularizada? Nisto do cumprimento da lei, há dois comportamentos possíveis: ou a lei é cumprida, com todas as consequências que daí resultam, mesmo as menos simpáticas aos olhos de um povo condescendente com o rompimento de leis; ou sabe-se da sua existência mas faz-se vista grossa ao cumprimento, postura muito em voga, aquilo que se chama “flexibilidade”. As leis existem sabendo-se que não são para cumprir. É o cenário mais agradável para um anarquista: destrói a autoridade do Estado, de cada vez que os próprios agentes do Estado fecham os olhos ao desrespeito da lei. É como a prostituição: proibida, mas tolerada.
Ignoro as motivações das autoridades do Canadá neste assalto aos imigrantes ilegais. Não sei se é apenas para mostrar a autoridade de quem quer fazer cumprir as leis. Ou se é a percepção de que o Canadá atingiu o ponto de saturação e já não carece de tantos imigrantes para fazer funcionar a economia. Só gostava que as histórias compungidas dos emigrantes portugueses tivessem outra moldura. Que alguém lhes dissesse que todo o tempo que deixaram passar sem legalizarem o estatuto de imigrantes foi a maior imprudência que cometeram.
Agora é fácil apontar dedo acusador ao governo do Canadá. Que, vê-se nitidamente, só pode ser conservador. É o estigma da direita amaldiçoada que levanta fidelidades caninas. A culpa, tantas vezes, acerta no alvo errado.
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