20.3.06

A França é um país perigoso para viver


Borbulham as bolsas de violência quando se esboçam os ventos da mudança. Pode ser contestável a visão, mas os ventos de mudança tentam inscrever a França no caminho da esperança. Pode haver quem discorde. Pode haver quem considere que uma lei que permite aos empregadores despedir jovens com menos de vinte e seis anos nos dois primeiros anos do contrato, sem lugar a compensação, é uma lei iníqua. Como há os que acreditam que essa lei é feita em favor dos tais jovens que bradam aos céus contra um mercado laboral que os exclui à partida.

Não me interessa discutir os méritos ou deméritos da lei. Apetece-me demorar sobre a contestação sonora que leva à violência sancionada pelos profetas de sempre. O direito à manifestação não está em causa. O direito à opinião deve ser assegurado. Tal como o direito ao disparate. Quando os limites do aceitável são ultrapassados, dá-me prazer assistir à resposta da polícia. Os canhões de água que troam sobre os manifestantes excitados, a água fria que tempera os excessos. Regalo-me com os bastões policiais que caem sobre as costas dos violentos desordeiros. Rejubilo com imagens de energúmenos arrastados pelos cabelos, tentando resistir à detenção.

Por princípio, sou contra a violência que a polícia exerce. Porque a exerce em nome da autoridade do Estado, como seu braço armado. Para alguém com tendências anarquistas, a parada de fardamentos policiais motiva desconfiança e desconforto. São os instrumentos da autoridade daquilo que um anarquista combate. E, no entanto, abro uma excepção quando testemunho as imagens dos folclóricos jovenzinhos que se reclamam do pacifismo e, num passe de magia, esquecem a teoria e passam à provocação, com o cardápio de violência que desmascara o pretenso pacifismo das causas.

Estes exacerbados manifestantes, em turba, provocam desacatos, provocam os polícias. Eles sabem que os polícias são treinados para terem pouca paciência em relação a quem os provoca. Insuflam-se de coragem e escaqueiram tudo o que encontram na debandada. Automóveis dos incautos que tiveram a infelicidade de ali estacionar, no lugar errado e no momento errado; cafés e lojas, franchisados, ou do comércio tradicional que os seus ideais deviam defender, são varridos pela violência que ataca indiscriminadamente; é inevitável, os restaurantes McDonald’s e outras lojas que mostram o perfume da globalização são vandalizados. Como se sabe, os proprietários destas lojas franchisadas e dos estabelecimentos de comércio internacional são os inspiradores das leis que cerceiam os direitos adquiridos dos desprotegidos. Eles, os fautores das leis, não os governantes. Percebe-se que os actos de violência sejam perpetrados sobre quem influencia este atropelo aos direitos adquiridos.

A comunicação social, como é habitual, transmite o episódio com uma capa de romantismo. Num apelo aos espectadores para serem condescendentes com os manifestantes que ofendem, provocam, destroem, exibem toda a sua intolerância. Pedem para sermos tolerantes para com quem vomita tanta intolerância. É uma comunicação social que toma partido, ofuscada pelo romantismo perdido do Maio de 68. Até porque não perde tempo a tecer as pontes entre estas manifestações e o Maio de 68, como se houvesse comparações entre coisas incomparáveis. Desfiam um rol de parcialidades: os registos da violência da matilha esfaimada são passados sem nota de reprovação; as cargas da polícia – em resposta a desacatos e provocações da turba inflamada – são condenadas, como se a polícia nem devesse estar presente para não incomodar a festival de folclore pontuado com actos de violência, roubo, pilhagem.

Se esta é a França que tenta, em desespero, salvar a face como paradigma do “modelo social europeu”, vou a correr entregar-me nos braços do “modelo americano”. Já dei mostras do meu anti-americanismo quase primário. Mal por mal, antes a tolerância do lado do lá, a flexibilidade que joga a favor dos desprotegidos (por mais que os arautos que vociferam contra a globalização e o capitalismo não o queiram admitir), a condenação dos que se manifestam sem respeitar a propriedade alheia, que nada tem a ver com as causas de que os manifestantes discordam.

É esta a França que tenta resguardar os cadáveres bafientos, enclausurados em armários cujas portas são impossíveis de abrir. A França numa fornalha, incendiada por quem não percebe que os tempos mudam e que as fantasias cultivadas são uma memória do passado que trouxe o apogeu francês. Apenas uma nostalgia. Eles não percebem que a teimosia afunda a França na melodramática asfixia de si mesma. Se é esta a França que vai vingar, no rescaldo da turbulência social, não é esta a Europa que quero herdar.

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