22.3.06

O “paradigma” da linguagem hermética

No regresso a casa, aguardava que o semáforo abandonasse a cor vermelha. Ouvia a crónica de um arquitecto sobre (des)ordenamento urbano. Não apanhei a prédica desde o início. Escutei três a quatro minutos de uma narrativa deliciosa. Sem correr o risco de errar, nesses três ou quatro minutos o arquitecto empregou cerca de trinta vezes a palavra “paradigma”. Era o paradigma disto, o paradigma para a frente, o paradigma errado, o paradigma acertado que não há coragem de adoptar. Não exagero: quando reparei que a verborreia estava enxameada de “paradigmas” comecei a contagem mental. Terminei no número vinte e três, tantas as vezes que o arquitecto usou a palavra.

A narrativa era deliciosa: impregnada de termos técnicos, embrulhada numa linguagem de difícil compreensão para os leigos. Era uma crónica inserida numa rubrica opinativa com a chancela da ordem dos arquitectos, mas incluída no horário nobre de uma das principais estações de rádio (hoje não me apetece fazer publicidade gratuita). Não se exige destreza intelectual para discernir que os ouvintes, àquela hora, ultrapassam o universo dos arquitectos que tiram uns minutos do seu final de tarde para escutar os colegas convidados a opinar via telefone. O grande público é o destinatário.

Intriga-me como se pode chegar ao grande público com uma linguagem presa aos tecnicismos. A escorregadela excessiva para o “paradigma” é apenas a cereja no topo do bolo (quantos ouvintes saberiam, antes da consulta ao dicionário, o significado da palavra "paradigma"?). Existe o hábito de acusar os juristas de empregarem uma linguagem inacessível. Um discurso redondo, cheio de desvios retóricos que fogem da eficácia da mensagem. O sampaiês é um “paradigma” do discurso nada atractivo dos juristas. Quando estava a ouvir o arquitecto dei comigo a pensar que a acusação que pesa sobre os juristas é injusta. Para ser rigoroso, a acusação popular não é de todo injusta; mas devia olhar para o lado, para outras categorias profissionais que também resvalam para uma linguagem fechada, apenas acessível aos seus pares. Os arquitectos padecem deste mal, como acontece também com os médicos, entrevistados em rádios e televisões, que compõem o rosário das maleitas do paciente com termos incompreensíveis. É a melhor maneira de não se fazerem entender por quem os ouve. Um diálogo de surdos, portanto.

O arquitecto, ontem, mergulhou numa linguagem técnica e com a roupagem do discurso académico. Nada contra o discurso académico (contra mim falo, que o tenho que usar no local adequado). O discurso académico deve ficar dentro das universidades e dos congressos onde especialistas do mesmo ramo se reúnem para comunicar entre si. Quando transborda os muros da universidade, o discurso académico esbarra no atónito público, boquiaberto com a hermética linguagem (enquanto não vai emprestar os ouvidos a coisa mais interessantes). A menos que a rubrica que às terças-feiras antecede o noticiário das sete da tarde seja um monopólio auditivo dos arquitectos, fico sem perceber qual a lógica do discurso de ontem.

Têm razão os que protestam contra o divórcio entre universidades e o mundo lá fora – as empresas, os cidadãos. Contra quem produz ciência e a encerra numa linguagem inexpugnável, apenas acessível a uma casta de especialistas que comunicam entre si, em círculo fechado. Nada me move contra esta exigência do mundo académico. É o costume enraizado, e escapar dele cristaliza a marginalização entre os pares do meio académico. Quando, à partida, sabemos as regras do jogo, ou o jogamos seguindo as regras ou nos sujeitamos às consequências dos desvios. O que não consigo perceber é a exportação da linguagem académica, hermética, para o mundo exterior à universidade. Para uma audiência sem preparação para a decifrar. Um discurso que não chega ao público-alvo contém uma menagem ineficaz. O orador a falar para si mesmo, apenas.

Depois da vigésima terceira utilização (na minha contagem) da palavra “paradigma”, o arquitecto findou a oratória. Fiquei então a saber que a rubrica é patrocinada pela ordem dos arquitectos. Afinal quem tinha estado entretido com a palavra “paradigma” não era um arquitecto. Era a arquitecta Helena Roseta…

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