13.3.06

E não se pode criticar a civilização ocidental? (Pontes entre J. C. Espada e Freitas do Amaral)

De vez em quando, a discordância com João Carlos Espada fala mais alto ao ler a sua crónica semanal no Expresso. Mas agora o respeitinho exige tratos de polé ao professor da Universidade Católica: o seu colega das económicas foi investido presidente da república e convidou-o para consultor político, com direito a visitas regulares ao palácio de Belém e notoriedade pública.

Se ignorar que há uma casta que se reclama um estatuto providencial, com mordomias que os colocam a acima de todos os mortais, nada coloca Espada acima das suspeitas. Ninguém lhe nega o direito à opinião; a mim custa-me ler Espada, sobretudo quando destila verdades inquestionáveis, do alto da sua objectividade que lhe permite planar sobre nós por ver as coisas com o discernimento que só está ao alcance dos predestinados. Aos predestinados, como o ministro dos negócios estrangeiros, o monopólio da verdade. Quem tiver a ousadia de dissidir, arremessa-se-lhes o rótulo de “ignorante” – que é o modo mais elegante, diria, mais diplomático, de matar uma discussão.

Espada não tem o desassombro de Freitas do Amaral. É verdade que os registos pessoais diferem: o embaixador do neo-conservadorismo distinguiu-se pelos escritos, não se lhe conhecem incursões televisivas; já o ministro dos negócios estrangeiros aparece de mais nos ecrãs da televisão com os seus olhos esbugalhados, no incómodo de ser abordado mais uma vez para o levar à retratação de declarações que só o próprio parece não perceber que foram, digamos, absurdas. Há um curioso fio condutor entre Espada e Freitas do Amaral: um veio da esquerda para se acomodar ao centro, o segundo partiu em digressão do centro para a esquerda; o primeiro estacionou, o segundo ainda vai a caminho de um lugar qualquer mais à esquerda.

Na sua última crónica, Espada conta que esteve em Washington com os gurus do neo-conservadorismo (Irving Kristol e a sua mulher Gertrude Himmelfarb). Os usuais pormenores que se dispensavam: Gertrude Himmelfarb é “Bea” para os mais próximos (Espada himself); o almoço anual da praxe, só os três, para sabermos que Espada é muito importante; os livros que leram durante o ano e “muito gossip”, que os académicos são comuns mortais e perdem-se na coscuvilhice; Espada fica alojado no local mais British de Washington, e que até os colegas do lado de lá do Atlântico o gozam com os seus tiques britânicos (e fica ao leitor a perguntar-se se acaso o Prof. Espada não nasceu com a nacionalidade errada).

Espada passa ao ataque, que é a melhor defesa das suas ideias. Denuncia uma certa perseguição intelectual ao que ele considera ser o património da civilização ocidental. Insurge-se contra um exército de intelectuais que criticam até à exaustão a civilização ocidental. Não compreende que sejam tantos os que desprezam os valores da liberdade e da tolerância e queiram mudar o rumo dos acontecimentos, pudessem eles (os críticos) alguma vez chegar ao altar do poder. Para Espada, a classe política que se perpetua no poder é o garante da civilização ocidental tal como a conhecemos. São eles o seu penhor, o nosso penhor. Contra as investidas do subjectivismo, do relativismo e de outros desvios que são atentados contra os valores da civilização ocidental, para Espada valores inquestionáveis.

Não sei o que me custa mais: se discordar de Espada e ser metido no mesmo saco de Noam Chomsky e aliados, mesmo sabendo que nada das ideias dos Chomskys colhe a minha simpatia; se repudiar as ideias dos detractores do capitalismo e da globalização significa um imediato entrincheirar ao lado de Espada. Entre os dois mundos, sinto-me mais próximo daquilo que Espada chama civilização ocidental. Ainda que sejam vários os aspectos em que não me revejo: a devoção do Estado, a exigência do indivíduo ceder perante o colectivo, a privação de liberdades individuais quando alguém ajuíza que valores fundamentais estão em perigo, o militarismo que estende a sua mão interventora por todo o planeta onde haja focos de instabilidade, uma vocação universalista de pacificação mundial, a convicção da superioridade civilizacional.

Os cultores deste mundo tão perfeito e ao mesmo tempo asséptico deviam perceber que o mundo não é como o idealizam. Não podem extirpar os males que vão levando o mundo por rumos que não coincidem com as suas preferências. Quando Espada e acólitos discordam dos que estão na linha da frente contra a civilização ocidental, estão no seu direito. Como, do outro lado, os detractores estão no seu direito de manifestar a dissidência.

No melhor pano cai a nódoa, não deixa o aforismo que nos esqueçamos. Fico perplexo quando os cultores da Liberdade (assim, com maiúscula) se coçam incomodados com a urticária provocada por aqueles que pensam de maneira diferente. Parece que a tolerância que pregam é teoria oca. E que a incoerência lhes prega uma partida. É nestas alturas que percebo que Chomsky e afins têm que existir.

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