Nos filmes de Woody Allen agrada-me o humor subtil e, ao mesmo tempo, devastador, as cenas peripatéticas em que não hesita em expor-se ao ridículo. Como nada existe perfumado pela perfeição, há um senão na filmografia de Woody Allen: a vivência judaica que tanto o influencia, diria que um preconceito que se mistura com o orgulho que os judeus têm em serem judeus.
“Match Point” é a antítese dos filmes de Woody Allen. Primeiro, porque se refugia na condição de realizador. Segundo, este filme inverte os padrões habituais de Woody Allen: o que há habitualmente de bom está ausente (o humor refinado), o que não é bom sinal; o que me desagrada (num registo pessoal de antipatia com a mundivência judaica) está também ausente, o que acaba por ser uma boa notícia. Terceiro, a história não se passa em Nova Iorque: retrata Londres, a alta burguesia com os seus hábitos tão “very british” – os “clubs”, os fins-de-semana no palacete perdido no meio do campo, as caçadas, o álcool a rodos que tira o verniz às pressurosas mães de família.
No início de “Match Point” passam imagens de uma bola de ténis disparada de um lado para o outro do campo, a câmara fixada na rede. O narrador disserta sobre a sorte. Convoca o espectador para o auge da sorte quando a bola acerta na tela branca que encima a rede; nesse momento a imagem fica congelada, a bola parada uns centímetros acima da rede, sem saber para que lado vai tombar. Nesses momentos em que a imagem e a bola estão retidas no tempo, o narrador questiona o devir da sorte. A força imprimida à bola, ou o vento que sopre numa certa direcção, hão-de empurrá-la para um dos lados da rede. É a diferença entre o ponto contabilizado para quem disparou a bola ou para o adversário. Um simples momento define o destino – de um jogo, de uma vida. Este é um filme sobre a arte da sorte, de como tantos vingam pelos encontros fortuitos com a sorte.
Um professor de ténis, cansado do ténis de alta competição, começa a dar aulas num clube com direito de admissão muito reservado. Um dos primeiros alunos integra-o na família, pela coincidência de gostos musicais (ópera e música clássica). Tornam-se amigos e partilham interesses. O protagonista cobiça a namorada do seu amigo – outra atracção do filme, para quem gosta do género: Scarlett Johansson. A sorte bate-lhe à porta de outra forma: a irmã do amigo cai de amores por ele e, como compensação das atenções pela menina, o endinheirado pai abre-lhe as portas das empresas. Sobe vertiginosamente na hierarquia, com as mordomias que compram a sua lealdade.
Habitua-se à prosperidade que caiu do céu. E à vida rotineira e desinteressante ao lado da mulher com que se casou, a mulher que lhe abriu as portas da abastança. O dilema chega-lhe quando a antiga namorada do cunhado passa a ser sua amante. A relação tórrida tolda-se quando ela lhe comunica a gravidez – indesejada para ele, para ela o motor da mudança para a vida das personagens do triângulo amoroso. A amante pressiona-o a contar a verdade à legítima, ele que lhe faz promessas de querer viver ao seu lado. A dúvida tortura-o, porém. Dividido entre a luxúria da relação com a amante e a tranquilidade e o bem-estar material do casamento. Acaba por resolver o dilema, dando voz à covardia misturada com a sua avareza irreprimível. Encena um crime que sacrifica a vida de uma vizinha da sua amante e da própria amante.
Um crime bem congeminado: simula um roubo como motivo do assassinato da velha vizinha. Quando se desfaz dos despojos do roubo, junto ao Tamisa, o grosso anel fica a tilintar no bordo da protecção que separa o rio do passeio. A imagem fica parada, por uns instantes. Sem saber se ao anel se vai perder no fundo lamacento do Tamisa, ou cair para o passeio. A diferença entre apagar todos os vestígios do crime e deixar uma pista que o podia denunciar. A diferença entre continuar a vida cheia de luxo e a desdita do cárcere. As imagens voltam ao movimento: o anel cai em terra firme. O espectador adivinha que o covarde avarento há-de ser apanhado pela Scotland Yard. Mas, no que tange à sorte cozinhada com o destino, há voltas intrigantes. O anel foi encontrado por um toxicodependente que, mais tarde, foi morto numa rixa perto do local onde o protagonista assassinara a velha e a amante. O crime ficou resolvido: foi o drogado que arcou com as culpas dos assassinatos. A bola, que ficou a saltitar no rebordo da rede, tinha caído para o lado certo. O match point foi resolvido a favor do covarde avarento.
A melhor maneira de abordar um filme de Woody Allen é a sátira, sem que a abordagem signifique o apoucamento do realizador. Os filmes de Woody Allen encerram um convite para o espectador parodiar a história, em jeito de mensagem descodificada: “não me levem a sério”. A mensagem subliminar, que existe, confunde-se com a forma despretensiosa com que Allen olha o mundo. Quando saí do filme, covardia e avareza foram as palavras que sintetizam o argumento. Isso e a certeza de que este é um filme que deve assustar homens que fazem carreira no adultério e outros que se candidatam à performance.
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