Traços de personalidade que são hostis. Traços indesejados na própria personalidade. E, porém, ao parar no tempo para a introspecção periódica, é a angústia que cresce ao sentir que alguns desses traços, tão repudiados, pairam sobre a personalidade que foi sendo construída. Saber que somos algo que rejeitamos ser. Ou pelo menos desconfiar que o caminho percorrido cimentou algumas dessas características vituperadas. A perplexidade de uma localização pessoal pouco prazenteira. Às vezes é como se, elaborada a introspecção, desse comigo a não gostar de quem sou.
Pode ser erro de análise. Ou apenas inútil desgaste de tempo, perdido nos meandros do insondável que busca o ser que habita em mim. Esse é um trajecto necessário: mapear os passos dados no outrora que ficou emoldurado, olhar no espelho com os olhos de quem olha de fora. Exigente exercício, como se fosse possível sair de mim mesmo e observar-me do exterior. Fazer o que é habitual na apreciação dos outros, agora na exegese do eu visto de fora, pelo mesmo eu que se auto-analisa.
Tarefa sem sentido, ou apenas um umbiguismo que lateja com violência, noutro registo de algo que procuro não ser. Afogueado pelo individualismo metódico herdado das influências, das leituras, uma interrogação: se não me perco para além dos limites do individualismo e entro em terrenos que ensimesmam o ego. Ego tão combatido, para não resvalar para egocentrismos que noutros são vistos como matéria abjecta. Dou comigo na encruzilhada do que sou, por algo que evito ser.
E começa a espiral, uma extenuante tempestade cerebral: aclarar pequenos sinais, atribuir-lhes significado, cozer as pontas de um descomposto puzzle para perceber o quadro no seu conjunto, já articulado. Insistentemente, desconstruir o quadro decifrado, pelos sintomas de desconforto que trouxe. Partir em nova demanda, reinterpretar sinais já amadurecidos, lê-los por outro ângulo. Tentar que o novo quadro, o produto da reinterpretação, seja mais risonho na introspecção que fermenta. Quando o resultado traz uma sensação de alívio, a percepção de que o percurso feito me colocou onde estou não por acaso, um novo dilema: as tentativas que se sucedem, sempre em demanda de um mapa interior tranquilizador, serão apenas um ardil? Apenas uma busca incessante que alimenta a auto-satisfação, e só porque exercícios anteriores sussurraram o descontentamento com o quadro pincelado?
Um caminho armadilhado, cheio de encruzilhadas traiçoeiras, alçapões que sufocam na queda surpreendente que provocam. É quando o caminho entrou na quietude de uma planície que os buracos escondidos na relva densa causam as decepções mais dolorosas. As decepções que emergem no restolho do auto-diagnóstico. Haverá razão: a busca pela perfeição, sabendo à partida que a perfeição é do domínio das entidades deificadas, não dos homens perenemente manchados pela insuficiência dos actos. A ambicionada e inalcançável perfeição traz a perturbação. Não haverá acções premeditadas na sua imperfeição. Os resultados podem-se afastar dos objectivos, fazer confundir o diagnóstico e toldar a perfeição. Nesse momento o Homem desfaz-se na sua pequenez, incapaz de perceber que os actos perfeitos estão longe da sua conduta.
Não sei se a leviandade recompensa. Não sei se a sensatez é um espartilho, uma guilhotina que lanceta o bem-estar de quem se perde nos descaminhos da busca do eu desavindo. Há momentos em que o mundo parece um lugar estranho. Apetece reduzi-lo ao lugar onde se dá o refúgio do eu, com as poucas pessoas que personificam a pertença individual. Fora disso, um imenso deserto a que não apetece pertencer, na contínua desidentificação com os tonitruantes gritos do que está lá fora. Nem assim sossego: atiro para fora de mim as culpas dos traços que o espelho implacável desnuda de mim mesmo. Uma demissão que obriga a regressar ao ponto de partida. Descontente com as conclusões, mais um exercício de redefinição das coisas e de mim perante elas. Mais um esforço para descobrir ilações sem o travo amargo do dissabor. Uma construção inacabada.
Sem comentários:
Enviar um comentário