24.3.06

Já que as causas estão na moda, uma pela salvação de Monza

Monza é um autódromo em Itália. Os adoradores do automobilismo chegam a cometer a heresia de lhe chamar catedral. Os bispos perdoarão a heresia, eles que também perdoam ao povo benfiquista o baptismo de “a catedral” para o estádio do Benfica. (A menos que fale mais alto o purismo religioso, aquele que tão asperamente se critica quando emana do Islão, e se restrinja a utilização do vocábulo “catedral” a matérias metafísicas.) Os adeptos do automobilismo olham para Monza como os devotos do catolicismo veneram o Vaticano. Não é obra do acaso conotar catedral com Monza.

Há dias li uma história que deve trazer os adeptos do desporto automóvel afundados na mais profunda angústia. Meia dúzia de pessoas que habitam nas redondezas do autódromo querem silenciá-lo. Alegam que o autódromo perturba o seu sossego, pelos decibéis em gritaria que se soltam dos tubos de escape dos bólides. Quando estas pessoas foram viver para as imediações do autódromo já Monza existia, já Monza tinha testemunhado as páginas mais douradas, e as mais trágicas, da história do automobilismo. O circuito não nasceu depois das casas habitadas pelos descontentes.

Um juiz sequioso de notoriedade, ou crente que os juízes têm o dom da redenção dos mortais, aceitou a queixa. Sentenciou, o juiz: doravante só poderão realizar-se corridas se os bólides instalarem silenciadores nos escapes! Ou o juiz é ingénuo, sem saber o que são corridas de automóveis, talvez adivinhando que os bólides são bólides com escapes silenciados; ou é um hipócrita assassino do desporto automóvel (e de Monza), se souber que sem o ruído dos escapes se perde o purismo das corridas, perde-se muita da performance dos bólides. Se o juiz não tem nada de ingénuo e se enleou nos labirintos da hipocrisia, antes tivesse a frontalidade de sentenciar o fim das corridas em Monza.

Bem vistas as coisas, a perplexidade não atinge apenas quem cultiva o gosto pelo automobilismo. Este é um exemplo de como uma casta de iluminados (excêntricos magistrados que se arvoram na condição de descendentes na terra de uma celestial divindade) persiste na convicção de que paira acima dos mortais e pode forçar a justiça que é necessariamente feita de acordo com a sua visão peculiar do mundo. A sentença do juiz é inqualificável: dá razão ao sossego de meia dúzia de elementos que já não suportam mais o ruído que lhes chega de Monza. Passa por cima dos interesses dos demais habitantes das redondezas que, ao que parece, não subscreveram o protesto. Sem mencionar uma pequena multidão de apaniguados do automobilismo, condenados ao orfanato de referências míticas. Pelo meio, os oportunistas do costume pularam de contentamento e colaram a sua causa ao protesto. Ambientalistas e aliados não tardaram a surgir como advogados dos tímpanos doridos da meia dúzia de protestantes.

E reitero que tudo isto deve preocupar não apenas os adeptos do automobilismo. Concedo, argumento com a parcialidade de quem tem no automobilismo o seu desporto favorito. Por um momento tento esquecer esta declaração de interesses. Tento fazer de conta que o meu desporto preferido é o curling, o hipismo, o remo. E ainda assim mantém-se a perplexidade com a sentença do juiz. Ao pesarem interesses em conflito, os magistrados devem olhar aos números que fazem inclinar a balança para um dos lados. A justiça não se pode demitir de imperativos democráticos. Quando um iluminado juiz decide a favor de uma insignificante minoria, espezinhando os interesses de uma larga maioria, entra em negação dos valores da democracia na justiça. Faz a justiça que lhe apraz, apenas.

Este mundo, tão cheio de causas fracturantes, abeira-se do precipício da incerteza total. Não é denegação do relativismo de que J. C. Espada é feroz detractor. Apenas um protesto contra os dados incertos das análises subjectivas de coisas que merecem ser apreciadas pelo prisma da objectividade. Que o juiz não goste de automobilismo, ou que em tempos tenha perdido uma namorada para um piloto de automóveis, ou que tenha inveja do glamour que envolve as corridas de carros – nada disto pode sopesar a aplicação de justiça. Qualquer dia, obrigam aeroportos a mudar-se, ou aviões a ficarem em terra, porque meia dúzia de pessoas padece de cefaleias pelo ribombar dos motores supersónicos dos aviões. E por aí fora: exemplos não faltarão.

Às vezes sinto que estes profetas do novo iluminismo estão a matar o mundo aos poucos.

2 comentários:

Anónimo disse...

Não, caro amigo. É só o mundo a evoluír (nem para bem, nem para mal... avança apenas).
Ou tens dúvidas de que daqui a 50 anos, estas ainda adoradas corridas serão um exemplo da primitiva e excessiva poluição gratuita oriunda do século XX?
Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

Ponte Vasco da Gama:
Ainda há dias dava o meu testemunho de como a evolução tem coisas belas. Noutros casos, parece-me que a evolução nos leva pelo lado errado da encruzilhada. Mas isto é apenas uma opinião, tão subjectiva como qualquer opinião. A minha forma de sentir. No assunto que comentaste, o mais importante não é tentar perceber a poluição gerada por corridas de automóveis (que, aposto, é uma insignificância ao pé de outros focos de poluição bem mais importantes; mas, como em tantas coisas na vida, há quem se ocupe a tratar do acessório, passando ao lado do essencial). O mais importante é perceber como os interesses de uma escassa minoria podem prevalecer sobre os interesses de uma maioria. Para mim isto é a perversão da democracia, com o beneplácito de alguém (um juiz) que devia ter educação suficiente para estimar os interesses em conflito.
E ainda que fôssemos pelo prisma da poluição das corridas de automóveis, tu sabes bem (estiveste largos anos no sector) que grande parte dos progressos da indústria automóvel teve um laboratório de excepção: o automobilismo. Se hoje os automóveis consomem menos combustível - num modesto contributo para um ambiente menos poluído - em muito se deve às descobertas proporcionadas pela competição automóvel.
Paulo