“Função ingrata”, pensava com os seus botões. A de ser o inquisidor lá do sítio, no apuramento das infracções de colegas e discípulos. Cabiam-lhe as investigações, assinava pelo seu punho a acusação, conduzia os inquéritos. Interrogava os acusados e as testemunhas. Notava que algumas pessoas o olhavam de esguelha, desconfiadas da pose inquisitória. Adivinhava, pelo sobrolho franzido de muitos, a reprovação que fervilhava no seu íntimo, por ele ser o Torquemada escolhido para a ingrata tarefa.
Sentia-se dividido entre o imperativo da função e a vontade de nada fazer. Tantas vezes, neste caso, por sentir que a acusação de alguém simbolizava a condescendência de semelhantes actos de tantos outros. Receava contribuir para a injustiça ao sancionar apenas aqueles cujos comportamentos se desnudaram, eles à mercê da sorte madrasta da notoriedade da infracção. Outros, com semelhantes pecadilhos, ou mesmo de pior jaez, pairavam incólumes. Com a sorte bendita de tudo ficar no segredo dos deuses, na escuridão onde olhos alguns conseguem ver coisa nenhuma.
Dividido, sabia-se na obrigação de agir. Ou pela inquisitória forma de agir, ou pela acção de desviar o olhar para o lado, congeminar as coisas como se elas fossem irrelevantes. Quase sempre, o dever com a ética forçava-o a agir como um Torquemada moderno, sem os laivos incendiários da inquisição espanhola. Às vezes parava para introspecção: e dava consigo como uma versão recauchutada do inquisidor-mor, olhado como alguém a quem a função de julgar os seus pares trazia o supremo prazer de se colocar acima deles. O julgador dos comportamentos alheios, um guardião da moralidade de todos.
A angústia crescia ao sentir que outros entre iguais o viam como alguém que se saciava a ajuizar pares e discípulos. No seu íntimo, o exercício da função de inquisidor, como era apalavrada pelos demais, era uma penosa via. Um caminho de que não podia fugir. Na recusa, o pretexto para se colocar sob a alçada de um inquisidor que tomasse o lugar por ele recusado. Alguns, mais chegados, apaziguavam-lhe a consciência. Recordavam-lhe: “é tarefa que alguém tem que fazer”.
Os hemisférios divididos eram a sintonia do desconforto da função. Por mais que interiorizasse que tinha que actuar ao conhecer comportamentos indignos, perturbava-o ter que julgar, ter que aplicar as penalizações adequadas. Não queria empunhar o fardo do justiceiro. De um justiceiro incompreendido, a quem muitos erguiam o dedo acusador da falta de solidariedade para com os seus pares. Quando os juízos se teciam sobre os discípulos, caía sobre ele o rótulo de fautor de iníqua justiça, a justiça feita num plano inclinado, no sacrifício da parte mais fraca.
Por isso vacilava, na hora de interrogar, na hora de decidir. Hesitava, receoso que a rigidez fosse impenitente. Praticava o benefício da dúvida: quando não recolhesse dados indiscutíveis da culpa dos acusados, fazia justiça pela ilibação. Levava a peito o princípio que protege a parte mais fraca, que obriga os julgadores a não penalizarem sem prova segura da infracção. Mas às vezes interrogava-se se isso não era sinal de fraqueza, titubeante na hora de inclinar o prato da justiça para o lado da condenação ou da absolvição. Perguntava se não cometia erros de análise, se aquilo que julgava ser insuficiente era bastante para fazer descer o braço duro da justiça. Crescia a angústia: mais uma vez dividido, entre a obrigação de julgar com o critério da justiça imparcial, e a força irremissível que o empurrava para a absolvição.
A tibieza atormentava-o. Por temor de ser um implacável árbitro, visto aos olhos alheios como um Torquemada de pequena dimensão. Não bastava a complexidade da tarefa, nem a sensibilidade dos julgamentos alheios, tinha ainda que lidar com os dilemas interiores que o afligiam ao ajuizar as infracções dos outros. E, pela primeira vez em muito tempo, deu-se conta que estava a contrariar um axioma da sua vida – desligar-se dos julgamentos alheios à sua conduta. As hesitações na hora colocar um ponto final num inquérito eram, em grande parte, motivadas pela necessidade de não manchar a sua imagem de bonomia. Ao chegar a esta conclusão, adicionou mais um motivo de perplexidade: afinal importava-lhe, e muito, o que os outros pensavam de si.
1 comentário:
"Reputation is what men and women think of us; character is what God and angels know of us." Thomas Paine (1737-1809). Será apropriado trocar "God and angels" por outra pessoa... talvez pelo próprio?
SB
Enviar um comentário