23.3.06

O fascínio da modernidade

A modernidade altera os costumes. Quando era pequeno e cometia a bizarria de falar comigo mesmo, diziam-me, em brincadeira, que quem fala sozinho não está no seu perfeito juízo. Convencionara-se que uma pessoa só pode falar quando tem um interlocutor. Ou resguardar os pensamentos para o seu íntimo.

Agora que o tempo passou e muito avançou a tecnologia, os hábitos estão em mutação. O que dantes causava estranheza e, por isso, rareava nas ruas, agora é lana-caprina. Pessoas que se passeiam falando sem que ninguém esteja por perto. Pessoas que conduzem automóveis sem a companhia de passageiros e falam entusiasmadas. Quando a novidade conheceu a luz do dia, causava pasmo ver os pioneiros proprietários de auriculares a falarem imersos na sua solidão, quantas vezes com o esbracejar que tipifica alguns. O utensílio foi-se vulgarizando, o hábito entranhou-se.

Agora já posso ir na rua a falar com os meus botões que ninguém olha com ar de incredulidade, outras vezes de estupefacção, outras vezes de dura reprovação social de quem é penhor dos valores cimentados. Posso nem ter nenhum auricular, ou daqueles utensílios mais modernos que dispensam os inestéticos fios que tombam do ouvido pelo tronco abaixo. Posso trazer comigo um desses aparelhos sem fios (que um lapso de memória faz com que não me recorde do nome), como se fosse um aparelho que melhora as capacidades de audição de quem ouve mal. Posso andar rua fora a falar sem ter alguém como destinatário da oratória, a não ser a minha inusitada demência. Agora tenho a bênção da modernidade, que me livrou dos olhares de espanto, dos olhares de comiseração por pensarem que o falante solitário estava apoderado pela dementação incurável.

É o tempo que muda os usos. A tecnologia que progride traz maquinaria que alicerça a alteração de hábitos. Já tinha acontecido com os telemóveis, que nos põem contactáveis em qualquer momento, em qualquer lugar. O telemóvel desnuda-nos perante os outros. Perde-se a clandestinidade que outrora era possível, quando os telemóveis pertenciam ao devir que alguma vez haveria de chegar. Agora a clandestinidade do ser, o secretismo do que somos e donde estamos, reclama a anormalidade de não ter telemóvel, ou de o ter desligado. Senão quem nos tentou contactar fica à espera de uma justificação para o telemóvel estar desligado (“fiquei sem bateria”, ou “estava num local sem rede”) ou para a chamada não atendida (“a música no carro estava muito alta”, ou “estava numa reunião importante e não podia atender”) – mesmo que tudo não passe de uma mentira redonda.

O advento das telecomunicações que se pulverizam por todo o lado e por todas as pessoas tem méritos. As pessoas comunicam-se mais, sobretudo quando estão longe e querem matar saudades. Até é possível enviar fotografias pelo telemóvel, já para não falar num preciosismo que há uns anos era do domínio da impossibilidade: ao mesmo tempo que se fala ao telemóvel, ver quem está do outro lado e fazer-se ver por essa pessoa. Há o lado desconfortável. Com as telecomunicações móveis de terceira geração, o desnudamento da privacidade é total. Não se pode mentir acerca do local onde se está quando uma chamada é atendida e pode ser visualizada do outro lado. Mas ainda existe a possibilidade de esconder a companhia que não se quer revelada a quem faz o telefonema. É só colocá-la fora do alcance da câmara que transmite a imagem enquanto dura a chamada telefónica.

A massificação das telecomunicações móveis adicionou mais regras ao léxico dos costumes sociais. Não é apenas a cruzada anti-tabagista que faz crescer de tom a reprovação social quando alguém puxa, distraidamente, de um cigarro num restaurante, estando na mesa ao lado outras pessoas a meio da sua refeição. Nasceu um novo sinal, sucedâneo dos sinais de trânsito, que obriga a desligar telemóveis – em cinemas, museus, locais de culto religioso, bibliotecas. Se acaso um distraído é colhido de surpresa pelo toque polifónico (como de hábito, estridente e inestético para a audição), arrisca-se a que uma chusma de olhares de reprovação tombe sobre si (já para não falar da humilhante reprimenda do funcionário destacado para accionar o castigo).

Hoje lembrei-me deste simples devaneio. Cruzo-me vezes sem conta com passeantes que falam sem terem ninguém por perto, exibindo os auriculares com fios e sem fios que a parafernália de gadgets telefónicos oferece. E recordei-me como falar sozinho era o sinal da loucura por perto. Sinal dos tempos, o comentário jocoso foi remetido para o lugar da arqueologia.

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