21.3.06

Os poetas, arquitectos da palavra (dia mundial da poesia)

E por dentro do amor, até ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro no amor.


Herberto Hélder, "A fonte, II" in "Ou o Poema Contínuo", Assírio & Alvim, 2004.

A poesia, a forma mais nobre de comunicação. É aí que as palavras encontram sublimes artes de serem ditas, na singeleza dos amontoados de estrofes que compõem o poema. Os poetas, esses, os verdadeiros arquitectos da palavra. Ninguém como eles as consegue usar com os dotes de magia, o encantamento que exala de um poema. Nada de mais errado no aforismo popular que adivinha que de médico, poeta e louco todos temos um pouco. No que toca a poeta, muitos podem ser aspirantes à condição. Poucos os que têm o privilégio de a interiorizar. O cadafalso do adágio popular é retumbante, no que ao poeta diz respeito: como pode um louco ser o visionário que tem o condão de usar as palavras com a arte de um poeta?

Pela poesia, uma miríade de sentimentos. Ora arrebatamento, no turbilhão das palavras que se sucedem com a velocidade vertiginosa de um poema lido de supetão. Ora umas curtas estrofes, palavras simples que tanto querem dizer. Outras vezes, as palavras dolorosas que saem da mão do poeta, um choro sofrido que se compõe no poema lancinante. E ainda a sátira, que escorre com as palavras desabridas encostadas nos versos. Há quem encontre no poema a forma sublime de cantar uma paixão. Porque, sempre, no poema há a liberdade da palavra. Na poesia que foge do espartilho da métrica, das convenções literárias que destilam requisitos para aceitar um poema no altar da poesia.

Poemas imagens, poemas retratos, poemas que são a dilaceração de almas sofridas. Ou poemas que se limitam a observar os elementos, tecendo loas à fúria do vento que descompõe as cidades e os campos, ao mar suave onde apetece deitar num dia cálido, ao encanto dos olhos que enternecem no momento em que o poeta fica em hipnose pelo encantamento do olhar.

Há num poema a forma mais alta de falar. Seja na voz doída dos poetas desencontrados com o mundo, ou na voz sussurrada de quem segreda o poema clandestino. Às vezes o poema faz-se voz de combate das militâncias que se perseguem. Há poesia política – poesia menor, na perversão da poesia pela militância política. Onde a poesia se reencontra com a sua essência é na singeleza do que os olhos vêem, ou os sentimentos captam, e emolduram no caixilho de um poema. Poesia é sobre a reinvenção da linguagem, a redescoberta das palavras que se casam em felizes combinações. Resultam em poderosas estrofes que são lidas repetidas vezes, sem o cansaço das releituras – antes, na inebriante posse dos versos que aquecem os sentidos do leitor.

E a poesia é um acto supremo de liberdade. Quando a poesia se adensa na complexidade da escrita, ao deixar nas entrelinhas várias leituras possíveis, ela estende a passadeira ao leitor. Convida-o a ser o intérprete pessoal do sentido da poesia, como se o poema saísse inacabado do poeta à espera de ser completado, no seu sentido, pelo destinatário. Como de um quadro se tratasse, pela liberdade de tradução dada a quem o visualiza. Nos versos, as palavras múltiplas escorrem como pinceladas que se vão acumulando no quadro. Através da leitura das estrofes, o poema vai sendo reconstruído pelo leitor. Que se torna ajudante do poeta, na oferenda do poema que se revela em tantos significados quantos os destinatários.

É na poesia que encontro um refúgio necessário. Como se entrasse num mundo à parte, estanque, onde todos os poemas – mesmo os que configuram uma tumultuosa sedimentação de palavras – aquietam o espírito sobressaltado. Já o revelei outrora e hoje deixo-o reforçado em versão alternativa: pudesse o tempo voltar atrás e reviver a meninice, quando sobre as crianças tomba a pergunta sacramental – o que queres ser quando fores grande – só para poder responder “poeta”.

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