15.3.06

Sintomas da gripe das aves nos humanos: estupidez emergente

Chego a casa para almoçar e dizem-me que acabaram de ver no noticiário que cada vez mais gente abandona os seus gatos. Alarmadas com informações de que o vírus da gripe das aves se transmite aos gatos, nem hesitam: porta fora com eles. Não interessa saber se há fundamento nos receios alarmistas difundidos por uma comunicação social sedenta em chafurdar na falta de rigor informativo.

Tudo terá começado com um gato que apareceu morto no norte da Alemanha. Um gato selvagem – que me seja desculpada a recusa em associar o adjectivo “vadio” a cães e gatos. Almas vadias são os ignaros que, à primeira oportunidade, provam o afecto pelos ditos “animais de estimação” com o abandono. Que interessa se o gato encontrado morto, no distante norte da Alemanha, era um gato sem dono, que errava pelas ruas à caça de alimento? Que interessa que tenha sido nessas circunstâncias que abocanhou um pássaro já doente, esquálido pelo vírus da gripe das aves que o consumia? Que interessa que os gatos domésticos raras vezes se aventurem fora de casa, sobretudo se forem gatos citadinos? Que interessa que esses gatos citadinos, encerrados no conforto da habitação dos seus donos, não tenham qualquer hipótese de contactar com aves, logo, de contrair o vírus?

Faz sentido o lugar comum do Homem como o único animal racional? O que fica provado é a falta de racionalidade quando o pânico se apodera do Homem. E fica demonstrado, mais uma vez, como essa racionalidade que, diz-se, é o esteio da superioridade do humano perante os demais animais, tem nutrido o mais aberrante espezinhar dos direitos dos animais.

Nem de propósito, ontem uma aluna perguntava se o Direito não reconhece os direitos dos animais. Estávamos a trabalhar nos direitos de personalidade espalhados pela Constituição e pelo Código Civil. Respondi que os códigos olham para os animais como coisas; e que às coisas não é possível atribuir personalidade. Não me coibi de discordar da fórmula legal. Como em tantos domínios, as leis sedimentam visões do mundo que estão para além de um conservadorismo démodé. Continuam a vingar, porque é mais cómodo o apaziguamento perante os usos estabelecidos do que mudar quadros mentais, com tudo o que essa mudança implica, como um forte abalo telúrico nas mentalidades.

Há uma vanguarda do pensamento bioético que advoga a atribuição de direitos aos animais. Um sector defende a extensão destes direitos apenas aos animais domésticos, por serem os que estão em convivência com os humanos. Por ter existido um fenómeno de socialização, entendem que estes animais são credores de alguns dos direitos de que os humanos gozam. Será a contrapartida do Homem pelo processo de socialização desses animais, por serem cauções do seu bem-estar pessoal. Outro sector, mais radical, argumenta que os direitos dos animais não devem olhar a distinções entre animais domésticos e animais selvagens. Todos os animais são merecedores dos mesmos direitos, por igual, sem discriminações. (Para um panorama sobre o assunto, ver o livro de Fernando Araújo, “A Hora dos Direitos dos Animais”, Almedina, 2003).

Na lamentável história do abandono maciço de gatos domésticos, nem sequer é necessário pôr em funcionamento estas teorias vanguardistas. Basta um mínimo de decência humana, alguma sensatez, o exercício da compaixão por animais que devem dizer alguma coisa aos afectos dos seus donos. Quando me dizem que tem havido um aumento do abandono de gatos domésticos, e que na rua são entrevistadas pessoas que respondem que sim, que equacionam atirar borda fora o gato que têm lá em casa, há uma súbita raiva que toma conta de mim. A raiva de continuar descrente na natureza humana, um pessimismo histórico que se adensa, a incógnita do futuro, na incerteza de perceber que desventuras de crueldade o Homem ainda será capaz.

É perante isto que tenho a tentação politicamente pouco correcta de, por exemplo, vedar direitos civis aos humanos sem discernimento para apurar a estupidez para que escorregam. E repetir um lugar comum: quanto mais dou conta que há pessoas assim, maior o afecto pelos animais. Há pessoas a quem o vírus das aves já se contagiou por simpatia, tanta a ignorância no alarme social que está montado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Para breve teremos uma posta sobre humanos abandonados.
Ou será que estamos perante um felino que reconhece aos mamíferos bigodáceos o que não reconhece aos sapiens sapiens?
Esperemos que a crueldade que critica não esteja latente no seu discurso, por defeito, ao não abordar crueldades maiores e realmente importantes...
Esperemos para ver.
Parque das Nações