Como se fosse a continuação do texto de ontem: a ideia só podia vir da equipa de Tony Blair. A crónica de Joaquim Fidalgo no Público de ontem revela o contexto. Rezam as estatísticas que vinte por cento das mulheres britânicas jamais foram agraciadas com uma carta de amor. As estatísticas são impiedosas para quem as ama (sem distinção de sexo, para não incorrer no discurso sexista e politicamente incorrecto que, como adiante se verá, transpira da proposta do governo britânico): há um atraso considerável na entrega de cartas de amor, pois metade das inquiridas já as não lê há mais de dez anos.
Para grandes males, grandes remédios. Com a generosa chancela das autoridades – que, quando têm como prioridade as “preocupações sociais”, se desmultiplicam em imaginativas oferendas que colocam o ordeiro e acéfalo rebanho no caminho certo. Da cartola saltou um programa governamental (“Get On”), cursos gratuitos para que os adultos ponham os seus sentimentos no papel. Seria altura para advertir os incautos de uma famosa expressão cultivada pelos economistas: “não há almoços grátis”. Aquela gratuitidade é-o apenas para os que forem destinatários dos cursos de cartas de amor. Ao resto dos cidadãos, sai caro – são eles que pagam essa aparente gratuitidade.
A ideia é original, mas nem toda a originalidade tem um travo adocicado. Pego nas palavras de Joaquim Fidalgo: como há atraso nas cartas de amor, “por isso é que o governo britânico, através de um seu Departamento de Educação e Competências, quer pôr os homens a escrever mais, tendo decidido, entre outras estratégias destinadas a melhorar a literacia, convencê-los a que escrevem mais…cartas de amor”. E matam-se dois coelhos de uma vez só: aumenta-se a literacia, promove-se o bem-estar das relações sentimentais. Já estou a adivinhar os advogados, quais abutres sempre vigilantes à espera de debicar carcassas acabadas de fenecer, a protestar contra a medida. Quanto mais cartas de amor forem escritas, mais casamentos se salvam, menos serão os divórcios que enriquecem advogados insensíveis à desgraça alheia.
Três perplexidades na medida. Primeira: uma incongruência entre esta arrebatadora ideia e a retórica politicamente correcta do combate às desigualdades entre os sexos. Retórica tão cara à esquerda moderna e esclarecida onde militam Blair e discípulos. As mulheres que anseiam por receber uma carta de amor podem ser homossexuais. Aí, a iniciativa da escrita de cartas de amor não pode partir de homens. Não faz sentido promover os cursos de cartas de amor e destiná-los a um público-alvo feito de homens boçais, mais amantes da cerveja e do futebol (por esta ordem) do que das suas caras-metade. Há verdadeiras amazonas ansiosas por frequentar esses cursos, para renovar uma relação que se esfuma ou conquistar a peça que mostra alguma resistência em cair no engodo. Já estou a ver a solução para o imbróglio: como se inventou um ministério para o fitness, pode-se criar um ministério para a igualdade dos sexos. E, já agora, promover a ministério a arte das cartas de amor. Até o governo engordar aos seiscentos e vinte e nove ministérios.
Segunda perplexidade: um recuo no tempo, logo numa era em que são elogiados os avanços da tecnologia. Regresso às estatísticas reveladas por Joaquim Fidalgo: entre as mulheres que andam tristonhas por não serem destinatárias de cartas de amor, “85 por cento das raparigas entre os 18 e os 29 anos disseram que preferiam receber uma carta de amor “à antiga”, escrita à mão, em vez de uma mensagem escrita em computador e enviada por correio electrónico”. As palavras manuscritas serão a expressão do sentimento de quem as escreveu, naquele momento de arrebatamento com a magia que palavras mil não conseguem descrever. Ou as cartas de amor serão a excepção na corrente inexorável da tecnologia – que até faz com que a escrita seja reinventada, como acontece com o quase ininteligível linguajar das mensagens de telemóvel – ou quando as senhoras são acometidas pela nostalgia do amor tórrido de outrora recuam no tempo, e param quando mensagens de correio electrónico e de telemóvel não existiam. São difíceis de satisfazer, estas mulheres!
Terceira perplexidade: a incumbência das cartas de amor é um exclusivo do sexo masculino? Não percebo esta ideia de que aos homens (e agora regresso ao discurso homofóbico…), e só aos homens, competem os passos que desatam os nós de uma relação. E porque não as mulheres começarem a escrever cartas de amor? Como é errada esta visão do mundo, feita dicotomia, em que o homem é agente activo e a mulher agente passivo do amor. Fica a ideia para o ministério número seiscentos e trinta: o ministério para fazer com que os homens sejam destinatários de cartas de amor.
(Limerick, Irlanda)