30.3.07

O enamoramento da culinária

Podia falar do efeito balsâmico da cozinha. Podia explicar como mergulhar em cozinhados, manusear ingredientes, vasculhar a imaginação para combinar sabores desconhecidos, é um acto terapêutico que embebe o repouso do espírito. Podia acrescentar as horas gastas em preparados exóticos, mais as decepções do palato quando chega a degustação. Ou o seu contrário, quando nem mesmo o comedimento da humildade impede o comprazimento pessoal com o repasto confeccionado.

As sensações da cozinha escapam ao domínio do dizível, na maior parte dos casos. Há pessoas que ficam atónitas com as horas de enclausuramento culinário, sem perceberem onde radica a fonte do prazer pessoal. Não entendem o deleite das cores e dos aromas quando se espalham vegetais e ervas aromáticas na banca da cozinha. Não conseguem discernir as sensações ininteligíveis, que todavia se apoderam dos gourmets, quando o preparado toma gosto no calor do fogão. Não são apenas os aromas que invadem a cozinha, que tantas vezes chamam os comensais ao lugar da casa onde o convívio encontra o seu altar maior. É também a forma do cozinhado, com a cama que se faz no tacho, as cores dos alimentos que transfiguram a paleta inicial.

Diria que a cozinha é um lugar mágico onde se encerram os segredos da alma. Cozinhar é uma exaltação do estado de espírito. Quem lida de perto com a arte, seja especialista ou mero aprendiz, já foi tomado pela exasperação quando o produto ansiado aparece adulterado. Dizem os antigos: há preparados que não resultam quando a indisposição tomou conta do artífice. Um exemplo pessoal: quando estou azedado, sei que são tempo perdido as tentativas para levantar natas em chantilly. Acontecia o mesmo quando tinha paciência para edificar uma maionese consistente a partir de uma mistura líquida de gema de ovo, óleo e uma pitada de mostarda, meticulosamente batida à mão.

O que me agrada na arte da culinária, por estes dias, é o experimentalismo. Conjugar sabores e ingredientes que à primeira vista parecem desavindos. Tentar obter deles um conjunto homogéneo, que realce a textura harmoniosa dos ingredientes que se combinam. Tenho-me afastado da gastronomia tradicional. Deixou de encerrar segredos. Por vezes, há a tentação para reinventar pratos tradicionais. Uma erva imprevista acama no refogado, umas gotas de um vinho espirituoso adornam um assado, frutos que celebram um peixe umas horas banhado num molho acolhedor.

A culinária é a sagração da alquimia dos ingredientes. Uma festiva cerimónia de engrandecimento dos sentidos: os olhos também comem, os odores libertam-se de ingredientes crus ou em curatela de fogo, os sabores demoram-se nas papilas gustativas. Por cima destes prazeres, o maior de todos: entrar numa cozinha, encher os pulmões de ar como pregão que chama a imaginação, solfejar pela inspiração da arte culinária. Não exagero se disser que a culinária é uma alquimia dos sentidos (e não só dos ingredientes, dos sabores, dos aromas, das cores que celebram o festim que tem lugar na cozinha).

Este é um requiem por uma arte que já me foi mais pródiga. Tenho andado arredado das lides. Será demissão do enamoramento pela culinária, ou tão só uma exaustão da imaginação carecida pelos segredos da cozinha? Só sei que às vezes sou assaltado pela necessidade de enfiar no avental e mergulhar em tachos, utensílios e ingredientes, sentir extasiado a sinfonia de cores, sabores e aromas que me cerca, que banha todos os poros. Apenas lamento que os súbitos impulsos culinários cheguem nos momentos mais improváveis: na distância da cozinha, nas horas que não aconselham amesendação, ao volante no meio de uma auto-estrada, quando os pensamentos vogam em espiral no refluxo do stress de todos os dias. Talvez por isso mesmo: há na cozinha um esconderijo onde recupero as forças exangues pelos atropelos do quotidiano.
Uma vez em casa, noto que a pulsão culinária se evaporou. Fica adiado aquele exercício de experimentalismo gastronómico ensaiado mentalmente, na alta velocidade da auto-estrada. Parece que o desejo de regressar à cozinha se esfuma com a mesma velocidade que os apetites pela inovação culinária passam por mim, esmagados pelo pé direito que pisa o acelerador enquanto aguardo, ansiosamente, que a auto-estrada chegue ao fim. Refúgio na cozinha e fim da auto-estrada emparelhados numa necessidade comum: a fuga à cansativa rotina.

2 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro: cozinhar e não comer...conduzir e não ter prazer...fazer exercício físico por vício...hummm, isto está pior do que eu pensava! O que te safará é que este ciclo "estranho" (é a palavra mais simpática que me ocorre) terminará em breve quando a tua filha te exigir "boas práticas" de educação. Ela é que te vai recolocar nos bons caminhos!

PVM disse...

Algumas correcções: só deixei de comer carne; há um universo infindável por explorar na gastronomia além carne. O que não prejudicou o gosto pela arte de Pantagruel. Pelas tuas palavras, até parece que estou a caminho da anorexia…
Dei conta que a corrida matinal é viciante. Mas, tu mo dirás, não tens hábitos que são salutarmente viciantes? Ou será que todos os vícios são condenáveis? O meu vício do exercício físico faz mal à saúde?
Ainda havemos de discutir o que são “boas práticas de educação”. Confesso que aí fiquei confuso. Como confuso fiquei quando sugeres que deixei de ter prazer na condução. Não me lembro de o ter escrito (corrige-me se estiver errado). E por mais que discordes pelos padrões da estética, hás-de convir que agora estou bem servido no que toca a tirar partido do prazer da condução!
PVM