2.4.07

Louco o mundo


Vejo os querubins trajando vestes negras, enraivecidos com a demência de que são testemunhas. Esvoaçam invisíveis, disparando a fúria porque as pessoas buscam a essência da loucura, da terrífica loucura que as amesquinha. As capas negras dos querubins dançam, silvam a cada golpe de asa encolerizado. Nada podem os anjos que idealizaram a bondade. Nem sequer quando vêm montados em trovejantes cavalos que querem esmagar todos os vestígios de maldade que se escondem até nos lugares mais recônditos. Até os anjos foram contaminados: já não são feitos de alva matéria nem vêm adejados pela auréola benquista.

As velhas persistem na língua viperina. De olhos esbugalhados às vidas alheias, como se as delas não existissem ou fossem apenas um limbo de onde vigiam todas as outras vidas. Não dormem, na vigilância demorada com que saciam curiosidade doentia. Morreriam se um dia todos os predicados da bondade tingissem o mundo. Não teriam então o oxigénio. Seria a doença maior que as levaria, como se um raio fulminante as atravessasse, a mortal espada que haveria de cercear a maldade enquistada. Mas aí haveria malvadez soerguida para limpar maldade insuportavelmente ignorante. Maldade, ainda.

Nas ruas de todas as cidades demoram-se as pessoas que se esquecem do que são. Parece que vegetam, como se andasse uns centímetros acima do solo, simulacro do que são pela imposição do local onde estão. Há nelas a anestesia dos corpos, uma maquinal errância que as leva a lugar algum. Atravessam-se no seu tempo: há nelas uma condoída imagem do tempo que se esfuma, como se os ponteiros do relógio medrassem debaixo da fogueira que aquece o inverno. E ainda que os corpos encham as ruas com a adiposidade herdada de alimentação modernamente cruenta, os espíritos são imagem de criaturas mirradas, carnes secas que acidulam quem nelas tocar.

Às vezes apodera-se uma imagem atroz: um lugar imenso onde todas as pessoas estão, um imenso pântano onde lutam pela sobrevivência, demorando-se atoladas no esforço maior para alçar a perna e dar um sacrificial passo para avançar escassos centímetros. Das entranhas do pântano exala um sulfúrico odor que entontece, cansa mais ainda os corpos exangues que se movem pelo pântano. E, contudo, os mortais avançam pela errância do desconhecido, fossem impelidos por uma bússola escondida dentro dos seus corpos. Movem-se, tenazes, para alcançarem o ermo local onde o pântano há-de ceder a vez aos prados verdejantes. Onde, enfim, as pessoas hão-de acometer no descanso final.

O contraste oferece a demência desleal. Uma vida inteira a irromper entre o fétido lodaçal, uma canseira provável a que os corpos se acostumam. A ruinosa esperança que se desmorona quando os pés se libertam das pesadas lamas do pântano e alcançam porto seguro. Os prados verdejantes são a cama onde repousam, por fim. De onde jamais se erguem, consumidos os exangues corpos pelo traiçoeiro remanso dos verdejantes prados que são sepultura prometida.

Atroz aliança, os querubins e as velhas são os juízes do tribunal das almas. Conspiram entre si, mas dão as mãos para julgar todos os espíritos que arremetem à rua. Parecem os doutores que dissecam os cadáveres nas autópsias. Dir-se-ia que querubins e velhas eternamente viúvas passam os dias a autopsiar corpos vivos. E quando espumam raiva, esbaforidos, pela perturbante vingança da bondade, inoculam os sedimentos da podridão. Até que os corpos se habituem à perversidade militante. Os querubins voam até aos campos pantanosos de onde recolhem as sulfúricas sementes que nidificam a crueldade sistemática. As velhas espalham as sementes ao vigiarem as vidas todas.

Neste lugar, nem sequer há tempo para a inocência das crianças. A genética é o impedimento. A genética fabricada nos fétidos pantanais, onde os progenitores são infectados e deixam a sua mácula nos embriões que fecundaram. Até que a loucura se apodere de todos, a insanidade malsã que se estende para além do sensível. Haverá um tempo em que nem sequer saberemos o que é a loucura. Todos os manicómios terão fechado as portas.

1 comentário:

Anónimo disse...

gabriel vai toma no inbas