31.10.07

A guilhotina do tempo


Um relógio – paradoxal objecto. Tanto é obra de arte, o pináculo da estética, a admirável peça que carece meticuloso empenho dos artífices que nunca têm a vista cansada de tratarem como filhos os relógios que criam. Como é carrasco das ilusões, o ditirâmbico porteiro das oportunidades que se lamentam pelo desperdício, ou pelos planos que não escapam do papel, dos projectos cerceados porque a foice da morte tombou, pertinaz.

Há nos relógios uma dança descompassada. A voragem dos segundos que se atropelam na sua velocidade incessante, acamando os minutos, as horas, dias, meses e anos que fazem uma vida. São apenas os juízes do valor que damos ao tempo que nos foi oferecido. Uns juízes especiais, desapossados de poder de julgamento sobre as acções e omissões de quem passa pelo crivo do tempo. E somos todos, mesmo os que se convenceram que são alienadas personagens do mundo que há. Não são os juízes do tempo nossos carrascos: somos nós, com a dom de dar utilidade ao sempre escasso tempo diante das mãos.

A uma dor não consigo descobrir arte de iludir: os relógios distribuem a claridade que separa a gratificação da amargura, do que não houve mercê de alcançar. Uma prisão angustiante, quando o tempo parece voar, supersónico, sem dar conta que obedece à mesma bitola. Só que às vezes apetece acreditar que há um qualquer arquitecto do tempo que nos engana, ao chegar o periódico acto de calibrar a balança que faz mover os ponteiros do relógio. Umas vezes os minutos escorrem lânguidos, numa exasperante lentidão, quase a sensação do tempo ter sofrido de uma inércia doentia. Se preciso for, logo no dia seguinte desagua uma enxurrada de tarefas e os ponteiros do relógio dir-se-ia que aceleram como se houve temor que o mundo fosse terminar amanhã.

As masmorras que me amordaçam são os relógios que ostentam os ponteiros cadenciados. Queria, por vezes, que eles parassem, por uns instantes que fosse. Há momentos que merecem imortalização, que exigiriam uma suspensão dos ponteiros, o tempo emoldurado para beber tais momentos em toda a sua seiva. Há também o seu contrário. Ocasiões que queria banidas do tempo, como se houvesse um salto que transportasse os ponteiros para uma folha mais adiantada do calendário. É da tirania do tempo que não há mister de me libertar. Pudesse convencer-me que os dias e meses e anos escorrem com a velocidade milimétrica de um relógio atómico e perderia o rasto ao dilema dos relógios que martelam o sossego do espírito, constantemente. É daquelas coisas que me é superior. Seja pelo temor da morte, seja pelo chão viscoso que piso quando há o descuido de espreitar por detrás do ombro, numa revisitação espúria do passado.

Não é o tempo ido que carece de atenção. Esse, já feito, não se repõe. Onde os relógios trazem a sua dilacerante voz é no porvir que o andamento dos ponteiros anuncia para depois. Não é aquele passo de um segundo para outro, em qualquer quadrante do relógio, faça dia ou faça noite. É tentar olhar por cima das ameias do presente e pressentir o impossível – as pontas do novelo que se compõem, ou noutros casos se descompõem, quando a marcha dos ponteiros anuncia a chegada do amanhã por que se espera.

É nesse exercício de paciente espera que tropeço nas armadilhas semeadas pelos relógios endemoninhados. Que se tece a ponte entre passado inerte e o devir, à mostra um tremendo cadafalso para onde é fácil resvalar. Rever paisagens marcantes, tão marcantes que se avivam na memória. E interrogar se algum dia serão revistas, ou se há-de chegar primeiro a despedida fatal. Deter-me diante da colecção de CD e reparar em discos já não ouvidos há longos anos, para logo a seguir permitir a interrogação incómoda: algum dia voltarei a escutar esse CD? No entanto, estou inerte, ali, diante do CD como se ele, na adivinhada improbabilidade de audição, chorasse pelo tempo escasso que impede uma vez, uma vez só que fosse, inundar a sala com os seus sons. Ou o lamento por mim, à míngua de ponteiros do relógio que permitam a revisitação aos sons já remotos.

Eis a sublime guilhotina do tempo, irremediável, com uma envenenada candura. Quantas são as coisas feitas, ou as palavras ditas, manifestações de arte testemunhadas, lugares visitados, pessoas encontradas – quantas são as vezes em que isso acontece pela última vez, mesmo que o percurso a palmilhar até ao abismo seja demorado? E que interessa que volte a existir repetição tardia, ou não, de tudo?

Há retóricas que pertencem ao património genético da personalidade. Nem que seja um profundo hiato a separar a retórica da sua consagração. Faço do “carpe diem” lema. Não demoro, todos os dias, a cultivar a negação do lema, afinal fogo fátuo que preenche o cardápio das boas intenções. Preso ao cardume do tempo incerto, às voltas com as fendas abertas entre o tempo ido e o que está para assentar, consigo tudo menos viver cada dia que passa, um de cada vez, sem repousar na almofada com os sinos eufóricos que troam as incógnitas que só a sentença derradeira permite aclarar. Até lá, fico sentado diante dos CD, quase sempre sem vontade para regressar a discos que não voltaram a tocar desde há largos anos.

30.10.07

Envilecia

O tempo tecia a teia onde os vícios se amansavam. Dobravam os dias, densa a penumbra da experiência; julgava, até, que os anos acumulados, todas as decepções arquivadas e náuseas pelas entediantes curvas do mundo, eram lugares onde empedernia. As coisas passavam-se ao contrário. Contra as suas forças, contrariando a geometria da indiferença, notava uma consumição da alma pelos desatinos que esbarravam no peito. Reagia: a amargura destilava, abundante, espreitando de lado para os eventos que os dias ofereciam, gravitando na órbita de um implacável pessimismo da espécie.

O pior é que discernia envilecimento. Porventura, ingrediente da reacção contra o funesto que emergia do fundo do lodaçal, a espuma fétida que provocava náuseas repetidas. Envilecia não por maldade inata. Envilecia, porque as rugas e os cabelos brancos eram prova do desfalecimento diante dos olhos que o fulminavam, mesmo que os raios troantes nem lhe fossem dirigidos. Era deles vítima. Todos os dias eram dias de tempestade, com a feérica trovoada a despejar relampejantes raios que o feriam. As feridas sempre abertas, as tempestades constantes impedindo a cicatrização.

Quase desaprendera de sorrir. Muito do tempo era pasto para o desassossego que abria ainda mais feridas, um choro interior interminável. Descobrira um deserto de emoções a corroer-lhe as veias, dissolvendo o sangue num soro transparente, uma errante rota com os passos trocados, sem perceber se havia destino perseguido ou apenas o vogar aleatório. Umas vezes no conformismo de ser empurrado pelo vento dominante. Outras vezes na teimosia de remar contra as fortes águas sopradas do mais profundo por marés imparáveis. Às vezes olhava no espelho e não reconhecia a face que espreitava do outro lado. Era um estranho dentro de si mesmo. Quando olhava para trás e fazia o rescaldo da vilania a que se entregava.

Uma força incontrolável apoderara-se dos sentimentos, dos sentidos, dos gestos. Comandava as palavras. Quantas vezes dava por si a terminar frases que eram sentenças avassaladoras para quem menos as merecia. E por mais que houvesse impulso para a retractação, a exculpação tardava até que perdia oportunidade. Ganhavam espessura os traços odiosos que tinham o condão de afastar quem lhe queria bem. Os afectos perdiam-se no seu rasto, a cada passo mais ténue, já quase uma distante memória. Do mais alto de si gritava uma inexpugnável e fria parede de aço, um castelo impenetrável de onde fitava a sua solidão.

E, contudo, sabia: que a deriva pelo envilecimento, o roteiro das emoções ausentes, o ensimesmar suicidário, tudo era o funesto oceano onde navegava. Nada apascentava o bem-estar interior. Simulava soluções para provocar o reencontro com o que julgava ser o seu eu autêntico, aquele que aprendera a conviver consigo nos anos demorados. Mas desconfiava: que arrepiara caminho pela artificialidade da terapêutica, como se fugisse do lugar onde se acantonara e assim fugisse de si mesmo, daquilo em que se havia transformado, sem certeza de regressar ao que era – nem sequer com a certeza de que lá desejava chegar. As sombras negras não desistam de preencher o horizonte. Para onde quer que olhasse, pontuavam as dúvidas lancinantes, interrogações que se sucediam com voracidade, suplantando as respostas que não passavam de esboços.

Algures por entre a desorientação impante, amordaçado pela tempestade cerebral que o domava, os pontos cardeais esfumavam-se na penumbra. Cada passo, dado com hesitações, comandado pelas dúvidas do terreno pisado. Em redor só discernia uma plúmbea atmosfera que impedia retratar os rostos, as casas, as ruas, as árvores. Podiam ser notáveis os campos de flores que se estendiam na frondosa paisagem, que o nevoeiro que repousava diante de si ocultava a visão plácida. Em vez das cores garridas e do perfume das flores, apenas a angustiante ausente claridade que o acometia à labiríntica existência.

A certa altura perdera a noção das certezas. E até o envilecer metódico se estremunhava num dilema: apenas reacção hostil a um mundo condoído, ou já inércia que o domava, transformando-o em protagonista do seu mundo entregue nos braços do opróbio incontrolável?

29.10.07

Jogos de guerra


Há quem se entretenha a brincar às guerras. Arranja-se um grupo de amigos, de preferência com a colecção inteira de filmes do Rambo, Vandamme e outros espécimes que consagraram a violência como “arte”. Gastam-se verbas absurdas na compra de material bélico. E vão juntos para o mato, equipados a preceito e com o sangue a ferver na ânsia de disparar uns tiros que causem “baixas” entre o “inimigo”.

Os “camaradas” afirmam que o jogo de guerra em que participam é um acto de nobreza. Explicam-se: usam armas sofisticadas, tal como se estivessem numa guerra a sério. A única diferença é que as munições são a fingir. Por mais que ali destilem um inexplicável (para mim) sentimento de violência gratuita, sabem que passariam dos limites se o jogo se confundisse com realidade e, no rescaldo, houvesse feridos e mortos a contabilizar. Não podendo as munições aleijar os jogadores, entre eles existe um código de honra. Têm que honrar o compromisso de se darem como baixa assim que são atingidos pelo “inimigo”. É isto que significa o acto de nobreza.

Há quem se contente com pouco ao explicar conceitos. Há aqueles cuja estreiteza de vistas não deixa alcançar mais longe, ofuscando lados escondidos dos conceitos que usam. O que me deixa atónito é empregar-se a palavra “nobreza” para caracterizar um jogo que é a negação de qualquer sentimento positivo. Se dúvidas houvesse, bastava escutar os testemunhos excitados de alguns dos participantes na refrega. Equipados a rigor, com fardamento militar e caras pintadas com as cores esverdeadas escuras apanágio da tropa, falam como se estivessem embrenhados num palco de guerra. Linguagem bélica e tiques de disciplina militar. A pose de combate, enquanto se esquivam entre a vegetação rasteira, de arma em punho, as botas escorregando pelo terreno lamacento. Sempre atentos à possibilidade do “inimigo” aparecer de surpresa para um ataque que pode liquidar os contendores do jogo.

Faço uma derivação por uma notícia que tinha lido horas antes. A propósito da violência nas escolas, um inquérito à população escolar revelou que dois em cada três alunos confessou já ter envergado arma de fogo dentro da escola. Reúno as pontas do novelo. Misturando as imagens de violência gratuita que escorrem com frequência de filmes que sagram o género – os tiros de rajada, explosões que dilaceram corpos e coisas, bonecos que se despedaçam figurando a ausência de valor da vida humana, como se ela valesse tanto como um pacote de arroz ou um quilo de cenouras. E há os videojogos que levam o género ao limite. Mata-se a eito, como se as vidas das personagens que aparecem pela frente fossem escolhos descartáveis, apenas coisas que se pode liquidar com uma frieza lancinante.

Há alturas em que a ingenuidade é indeclinável. Há pouco fiz alusão à desvalorização da vida humana na bolsa das coisas – sim, das coisas, que por andar de rastos só apetece assim qualificá-la. Quando se brinca às guerras, partindo à caça do “inimigo” para o liquidar, é disso que se trata. Apoucar a vida das pessoas. Ainda que tudo não passe de uma simulação, o seu simbolismo encerra o significado do que se passa à nossa volta. Há quem não hesite em esmagar a vida de outrem, como se fosse um percevejo que incomoda e é calcado impiedosamente. As guerras a brincar são a transplantação das guerras a sério, com o grau zero de dignidade, em rigor, a inanidade elevada ao expoente máximo.

Aos valentes que fazem lazer com os teatros de guerra simulados, dois conselhos. Primeiro, umas consultas de psiquiatria. Para avaliar os distúrbios de personalidade que alimentam esta perversão de valores. Porventura a terapêutica consistirá em leituras assíduas, visitas a exposições de arte, espectadores regulares de peças de teatro alternativas, cursos de culinária, voluntariado que acalme o espírito. Pode suceder que nem assim a cura se consiga sobrepor à enfermidade mental que os apoquenta. Aí sobra o segundo conselho: façam as malas, emigrem para um teatro de guerra, daqueles onde as balas disparadas são a sério, onde as emboscadas se sucedem no instante que menos se espera, onde os corpos se desfazem em mil pedaços. Que pulem de teatro de guerra em teatro de guerra, perseguindo um trilho de sangue e morte e bombas e tiros disparados em abundância. Até que chegue a sua hora. Ao menos terão o prazer supremo de morrer num campo de batalha - a sério. Naquelas cabeças muito estreitas não haverá objectivo mais alto na vida.

Não consigam derrotar a patologia, o segundo conselho traz-lhes outra vantagem: soube há tempos que os mercenários que vagueiam de guerra em guerra são pagos a peso de ouro (cerca de novecentos euros por dia!). Mão-de-obra com elevada qualificação, portanto. Quando soube deste preço da carne para canhão das guerras, saltou a certeza de que o mundo ensandeceu e não se lhe augura panaceia.

26.10.07

As lições inúteis da História


Em Espanha, decidiu o governo passar uma esponja pela História desconfortável. Nomes que fizeram parte da ditadura franquista e que ainda perduram na toponímia vão ser varridos do mapa. Manda a lei feita por socialistas. Como se o passado franquista não tivesse acontecido. Era bom que a História da humanidade não abrigasse o património de ditadores ominosos, ou de loucos que cercearam o viver de tantos. Por mais que sejam dolorosas as feridas, por mais que elas permaneçam abertas, refazer o tempo passado é uma indignidade maior.

O pior é que nada se aprende da História – de outros episódios de revisitação do passado, com acontecimentos reescritos a condizer com a consciência aquietada, ou apenas para acalmar espíritos que ainda vivam atormentados pelas atrocidades que um regime despótico, mas já deposto, cometeu. Os exemplos do estalinismo de nada servem. E, contudo, não estão assim tão distantes de nós no tempo. Porventura será outra coisa: apenas ignorância, uma tremenda manifestação de desconhecimento dos algozes da História. Não sei o que será pior: aprender a conviver com o nome de um sequaz de uma ditadura ostentado na rua onde vivemos, ou saber que almas piedosas, mas docemente tortuosas, se desfizeram desse passado em nome de um presente imaculado. Só que manchado pela mentira, porque não há como apagar do mapa o que já aconteceu.

A ideia de que o colectivo se pode desfazer da sua história incómoda transporta a mensagem ilusória de que cada pessoa tem condições para se libertar dos fantasmas que atormentam. Convencendo-se que o percurso de vida foi um rosário de momentos idílicos, já que os momentos amargos, as horas de tristeza, as dores pungentes provocadas pela perda de um ente querido, jamais teriam marcado encontro com o calendário da vida. Seriam só o pasto para um difuso pesadelo, a confirmação da realidade que não passou de um momento onírico.

Tenho um problema com quem nos convence que há um lânguido oceano de rosas no que deparamos pela frente, todos os dias – os passados, já refeitos pela cirurgia da História, e os futuros, por acomodação dos espíritos. Temo esta gente: são artífices de uma anestesia colectiva, uma mordaça invisível com o dom de calar o descontentamento dos que não se revêem na linha oficial. A condução de quem governa obedece a imperativos de imagem, pois é cada vez mais a projecção de uma imagem, tantas vezes ilusória e sem conteúdo, que conta na hora de arregimentar fidelidades que se convertem em votos. Contudo, esta é mais uma achega para a distorção da pedagogia de quem manda. Que ensina a não olhar aos meios para chegar aos fins, e oferece padrões alterados do que aprendemos ser a ética.

(Ainda que seja terreno que me custa pisar: há aqui o tal moralismo que condeno e que me traz desconforto quando noto que para lá resvalei. Além de que a ética é subjectiva, não formatável por padrões de um sentido só.)

Parece sanha o que cerca por todos os lados – afinal um produto da prestimosa Internacional Socialista: penhores da consciência colectiva, imprimem o rumo que, de dentro das suas cabeças, se há-de contagiar à consciência de cada indivíduo. Sob pena das ovelhas tresmalhadas serem apontadas a dedo, votadas ao ostracismo, acusadas de complacência com o contrário do que os pais da boa moral dizem combater. É nestas alturas que emerge um espírito de contradição. Não é só pelo imperativo de aborrecer, de romper consensos que nos mergulham numa placidez doentia. É também por homenagem a princípios inamovíveis. Tão inamovíveis como o tempo arquivado nos anais da História, que se pensava fazer parte do património inerte, porque pertence ao domínio do já acontecido. Estes sacerdotes da pós-modernidade contemplativa, de um artificial maneirismo politicamente correcto, são prodigiosos espíritos convencidos que podem mudar a História por força de lei e porque a sua iluminada vontade o quer. Por mais que se esforcem por serem engenheiros sociais, às vezes descuidam-se no afã e perdem-se nos meandros do ilusionismo, sem darem conta.

O passado franquista da Espanha é deplorável? É. Mas aconteceu. E há nomes nas ruas e praças das cidades e vilas e aldeias que já são património desses locais, entranhados nos hábitos das populações. É insidioso acreditar que a História incómoda de uma país se pode branquear, passando lixívia nos nomes dos fautores desse passado ignóbil. Como é insidioso o nome da tal lei: a lei da “boa memória”. Desconhecia que se podia fazer juízos de valor acerca da memória.

Perante isto, já nem sei de quem ter medo. Os que vão ser varridos da toponímia estão mortos, já não fazem mal a ninguém. O mesmo não se pode certificar dos que ainda por cá andam, tão apressados em fazer revisitações estalinistas do passado.

(Em Madrid)

25.10.07

Hotéis assépticos

Há peças de literatura sobre hotéis, de como os escritores se enamoram por hotéis e deles fazem a sua residência. Descrevem hotéis de cinco estrelas ou menos, mergulhados no luxo e em pequenos detalhes de classe à mistura com a paisagem bucólica, arquitectura de excelência, ou apenas o charme discreto que leva os escritores ao enamoramento vertido nas palavras que imortalizaram esses hotéis.

Nessas páginas, dizem que gostam de saltar de hotel em hotel, o travo adocicado da ausente habitação fixa. Serão nómadas guiados pelo pouso temporário. Um hotel é isso mesmo: tece a ponte entre uma etapa acabada de preencher e a do porvir. Instalam-se uns poucos dias, por vezes semanas a fio. Mas acabam por embalar os haveres em demanda de outras paragens, outro hotel escolhido a dedo, que há-de trazer para as páginas da escrita outras sensações, outros detalhes da paisagem e da arquitectura, outras pessoas com quem hão-de conversar dando motivo a reflexões, banais ou das que vão até às profundezas do pensamento. Um outro que é só a repetição em lugares diferentes.

Para os escritores que alguma vez legaram palavras elogiosas aos hotéis por onde foram passando, os hotéis resguardados na memória têm vida. São lugares onde os escritores deixaram vestígios de emoção. Mais tarde, se o escritor atingiu a ribalta e germinar um séquito, os hotéis do seu roteiro ganham personalidade própria que ecoa nas palavras escritas, entoando os predicados do hotel. Estes hotéis entram num roteiro cultural, com os admiradores do escritor demorando-se em cada sala que ele retratou, no restaurante, no alpendre, no bar onde vogam as cortinas de fumo acompanhadas pelo som do piano, revivendo os dias e noites que foram o leito onde se prepararam as palavras glorificadas em êxitos editoriais.

Não consigo acompanhar a excitação com hotéis. Vejo-os como portos que acolhem navios: a paragem que se impõe para o recolhimento nocturno, pois afinal temos que dormir umas horas. Não digo que desdenhe o bem-estar de um hotel. Quem se não importa de deitar numa espelunca se a pode trocar por um hotel como comodidades? Só que não consigo, como alguns escritores celebrizaram, “sentir-me em casa” quando me acomodo num hotel. Tenha ele quantas estrelas tiver. No hotel não há nada património do hóspede. Apenas um lugar indiferenciado pernoitado por todos os hóspedes que estiveram alojados naquele quarto. Um mar de estranhos passaram pelo preciso quarto onde estamos alojados. Não é de suspeições de higiene que se trata, pois as regras de higienização actuam. É só a estranheza de saber que na noite anterior, nas noites anteriores, estranhos fizeram seu aquele que é o meu leito temporário.

Nunca passei temporadas em hotel nenhum. Nisso divirjo dos escritores que afamaram hotéis. Falta-me esse traço que poderia trazer alguma familiaridade, diria mesmo alguma intimidade, entre um hóspede e o lugar que o aloja na prolongada estadia. Todavia, as estadias demoradas transformam um hóspede em residente habitual. E, se assim for, os textos encomiásticos de hotéis perdem o seu fulgor, porque os hotéis se reconstituem em lugares onde os hóspedes deixam de o ser e passam à condição de residentes habituais. Num exílio necessário do domicílio, porventura porque o sedentarismo do lugar acomoda uma doentia claustrofobia.

Só que, então, os hotéis passam a ser refúgios. É mudar de residência por outra residência, com a arrumação dos pertences, a sedimentação de laços, o acostumar ao lugar, a identificação com a paisagem. O estreitamento de outros rituais, como a cama onde se deita, a sala do pequeno-almoço, o bar, a sala de leitura, a recepção onde vai crescendo uma intimidade familiar entre o hóspede e o hotel. Que se transforma em sua casa. É só um simulacro dos rituais que entontecem, cansam pela repetição com que se sucedem. Mas há novos rituais – rituais à mesma. Um hotel onde as pessoas se arrastam em prolongada estadia é a casa de que se exilaram. Pela identificação que se cimenta. Haverá fuga de si mesmo quando a acomodação demorada no hotel grita bem alto.

Como digo, nunca experimentei a sensação de remover a existência para um distante hotel onde seria pessoa diferente. Por enquanto, os hotéis continuam a pertencer aos lugares de passagem de seguida esquecidos. Neles, o espartilho da indiferença.

(Em Pamplona, Espanha)

24.10.07

Casamentos a prazo


Uma deputada alemã descobriu, com uma cientificidade notável, que os casamentos duram em média sete anos. Daí que tenha proposto uma lei que dá a possibilidade de celebrar um contrato de casamento por um prazo de sete anos. Desenganem-se os que já estão a adivinhar a cor política de sua excelência: não é das esquerdas, afinal penhoras de tudo o que se diz “progresso social”. É do partido democrata-cristão.

São estas desafiantes surpresas que tonificam a vida. Não é só pelo inusitado da ideia, para mais com o manto de lei que a cobriria caso tivesse sido aprovada pela maioria dos colegas da deputada. É sobretudo pela filiação ideológica de quem assumiu a paternidade da proposta. Estamos habituados a olhar para políticos democratas-cristãos como uma das exalações bafientas da paisagem partidária. Eis que da Alemanha chega uma arejada deputada que combina o conservadorismo de matriz com a coragem para avançar com uma ideia que deixa a léguas as “causas fracturantes” da esquerda caviar doméstica, tão pródiga nessas causas e no “vanguardismo social”.

É estranho que seja uma deputada democrata-cristã a defender a possibilidade de duas pessoas se casarem por sete anos. E paradoxal, porque os democratas-cristãos, fiéis ao conservadorismo dos valores, defendem a todo o transe a família como célula nuclear. Sagram a família e mobilizam os seus valores em consonância. Não sei se passou alguma ideia tresloucada pela cabeça da deputada, ou se ela foi atingida por uma trovoada que lhe revirou a parte do cérebro onde estão alojadas as tendências ideológicas. Também desconheço se a disciplina partidária, tão usual, falou mais alto na hora de calar a afronta saída da boca da deputada. Mas delicio-me a adivinhar as cabeças ordenadinhas dos conservadores cristãos a contorcerem-se perante a inopinada ousadia da colega de partido.

O que é espantoso é como sobre tudo se legisla. Não é novidade. Dizem que é produto da complexidade da vida, que exige uma actividade frenética dos sacerdotes da legislação. Outros, mais cépticos, apenas desconfiam que a febre das leis é o pretexto para ostentar a autoridade do Estado. Uma forma encapotada de autoritarismo – a forma sofisticada de totalitarismo, em convivência com a democracia. É admirável que uma ficção estatística tenha tanto poder para motivar a proposta de uma lei que fixa o prazo de um casamento. A deputada terá olhado para uma estatística qualquer que mostrava a duração média dos casamentos: sete anos. Bastou para ensaiar a lei. A deputada deve saber tanto de estatística como eu de agricultura: é que as médias escondem muita coisa por entre a penumbra.

Deito-me a imaginar que a ideia da deputada chegaria a lei. Os casamentos seriam como os contratos dos futebolistas, com prazo? Haveria que levar a sofisticação da lei ainda mais longe. Prever quando se poderia romper o casamento antes do prazo. É que os casamentos podem durar sete anos, ou menos, ou até mais. Se não houver paciência para deixar escorrer os sete anos, ou se houver pelo caminho uma terceira pessoa que requisite os serviços de um dos consortes antes de atingidos os sete anos, como se acertar o rompimento antecipado do vínculo? Haverá uma cláusula de rescisão? Matéria volátil, a da cláusula de rescisão: se tiver pouco valor, sinónimo de que não se acredita que os sete anos sejam passados em pleno casamento – ou que o vínculo tem pouco valor; se for astronómica, à medida das grandes estrelas do futebol, é porque alguém quer prender o outro com a força de correntes de aço. E se a união se for cimentando e, no fim dos sete anos, as duas pessoas quiserem continuar juntas? Serão proibidas de o fazer, para não contrariarem a fantástica visão de quem legislou? Ou terão que renovar votos por mais sete anos: nova boda, novas prendas, mais convidados, mais lauto manjar e folclore a preceito? A deputada alemã será sócia de uma empresa de eventos envolvida no negócio dos casamentos?

No tempo em que vivemos, já nada espanta quando damos de caras com a fobia de quem legisla. O que é raro é não haver leis que versam sobre o insólito. Outro exemplo: há tempos soube-se que o governador de um Estado brasileiro embirrou com o uso do gerúndio, porque os funcionários – talvez tomados pelo vírus que caricatura o alentejano – estavam habituados a responder “vai-se fazendo” de cada vez que eram interpelados sobre o andamento de projectos e obras. Ora o “vai-se fazendo” é um eufemismo para “deixa para amanhã”, ou “logo se vê”, ou “talvez se faça”. Irritado, o governador proibiu, por decreto, a utilização do gerúndio. Para coagir os preguiçosos funcionários a fazerem, em vez de “irem fazendo”. E assim, por força de decreto, se mudam as convenções gramaticais a uma língua.

23.10.07

Nem o pseudónimo lhe valeu


Houve um dia, já remoto, em que um homem de meia-idade, boçal, entrou no gabinete. Estava lá para se queixar, de tudo e contra todos. Tinha uma ideia vaga do mundo, tido como um resumo do pouco espaço que gravitava em seu redor. O bigode farfalhudo aparava os salpicos de saliva que gotejavam a raiva incontida nas palavras amargas, agrestes, por vezes grotescas. No melhor dos exemplos da suprema ignorância: dos que se fazem passar por expoentes da inteligência, quando nidificam na mais rasteira falta de inteligência.

O primeiro impulso foi terminar a conversa ao fim de poucos minutos. O homem incomodava-o, profundamente. Aquela boçalidade mental era um atentado, soez. E, contudo, deixou o tempo escorrer, deixou o homem expandir a imbecilidade descontrolada. Perante os queixumes, entrecortados com fina análise social a destempo, sentia-se dividido ao olhar para o homem que não parava de falar. Tanto queria pôr um ponto final na conversa, com a mão abrupta que a arrogância do homem merecia, como se deixou anestesiar pela sucessão de dislates exarados a cada instante, só para certificar até onde ia a necedade de uma pessoa.

A raiva soltava-se entre os dentes, perfumava cada palavra com o odor fétido de uma cabeça inquinada por uma visão distorcida do mundo. Os olhos fulminavam-no, com uma ferocidade assustadora. Não que temesse pela integridade física: ainda que o homem fosse assustador, ainda que não fosse difícil adivinhar que era um agressor em potência, estranhamente não se sentia ameaçado. Talvez porque a raiva não lhe parecia dirigida. Talvez porque ele era, naquele momento, o confessor que amparava toda a revolta do homem – contra a universidade que o acolhera, trinta anos depois de ter deixado os bancos da escola; contra os alunos que coincidiam no mesmo curso; contra professores que acusava de inépcia, incapazes de manter a disciplina e, no seu supremo julgamento, incompetentes; contra o país inditoso, que perdera há muito o rumo, mergulhado numa profunda crise de onde não se antecipava saída; contra o mundo que ele desenhava como uma conspirativa força unida contra a sua pessoa.

Os disparates de enfiada iam crescendo de intensidade. A certa altura, por ocasião do protesto contra a indisciplina dentro das salas de aula, asseverou que o problema era a falta de pulso dos professores. Sintoma de como o mundo estava torto. Os professores deviam esbofetear os indisciplinados para os pôr na linha. Diante do sociopata, olhou-o nos olhos, deixando de escutar as palavras poluídas de indigência mental. O homem continuava a debitar o absurdo, mas já nem o ouvia. Perante o sociopata, apeteceu-lhe ser o mandante de uma brigada de energúmenos que dessem caça, pelas ruas da cidade, aos sociopatas que dependiam da violência como oxigénio da sua existência. Enquanto o homem teimava em desfiar o rosário de acusações, do outro lado imaginava o gosto perverso dos energúmenos a cometer atrocidades sobre o sociopata. E de como ele se acovardava, suplicando por misericórdia, invocando o nome de santas da devoção e os filhos – como se os filhos lhe pudessem valer, ou como se eles tivessem responsabilidade pela idiotia do progenitor.

Anos mais tarde, quando compulsou memórias em livro, ficcionou este episódio. Os nomes eram fictícios. Até o seu, como autor, escondido sob um pseudónimo. O livro viria a ser um êxito editorial. À terceira edição, a editora organizara o lançamento com direito a cerimónia solene, seguida de sessão de autógrafos. Ao fim de mais de uma hora de cansativo dedilhar da caneta, já exangue de tanto autografar, surgiu-lhe pela frente um homem idoso, maciço, farfalhudo e grisalho bigode, os olhos vidrados, estendendo maquinalmente o livro sem proferir qualquer palavra. O cansaço tirara-lhe o discernimento: era mais um comprador do livro, mais outra anónima pessoa que passara diante da mesa onde eram produzidos os autógrafos.

À medida que abria o livro na página escolhida para o autógrafo, perguntou ao homem qual o seu nome. “Severino”, saiu-lhe, seco, com uma voz forte emprenhada por um acentuado sotaque minhoto. “O mesmo Severino que lhe apareceu no gabinete nas páginas desse livro. Não trouxe a brigada de energúmenos para me pôr no sítio? Aproveite que estou aqui, diante de si, preparado para tudo”. Lívido, olhou a medo para cima, onde estacionara o homem consumido pela idade, em tom desafiante. Antes que pudesse balbuciar o que quer que fosse, o homem voltou-lhe costas com um esgar cínico, deixando o livro a meio do autógrafo. Disparou, triunfante: “como vês, nem o pseudónimo te valeu”.

22.10.07

As curvas sinuosas da Europa


Por entre o reboliço de negociadores e comunicação social, que não se cansam de aclamar o “Tratado de Lisboa”, há expressões de desencanto, até de alguma virulenta oposição. Sinto-me dividido. Europeísta convicto, acho exageradas algumas manifestações dos que vêm na União Europeia aquilo que dificilmente ela alguma vez será – os Estados Unidos da Europa, com os países remetidos à condição de anónimas regiões. Mas, europeísta convicto, não me revejo na euforia uníssona de políticos envolvidos nas negociações.

Se há virtude nestas negociações, é trazer a Europa para os holofotes. Poderá haver alguma razão no desconforto dos críticos, quando acusam a coligação de políticos nacionais, eurocratas e entusiasmados jornalistas de tecerem um tapete por onde campeia alguma manipulação. Todavia, as páginas dos jornais têm sido esconderijo de prosa contra-sistema. Se as pessoas estiverem interessadas em consumir o que vai além da retórica oficial, não há carência de material alternativo. É aqui que vejo o lado positivo, um momento deliberativo por excelência: informação à disposição das pessoas que se queiram interessar pela União Europeia. Cabe-lhes digerir a informação, perceber onde existe manipulação, onde termina a propaganda iconoclasta que parece divinizar a Europa unida, os erros factuais dos seus críticos. E saber se são muitos os que se interessam pela recolha de informação.

Um europeísta convicto pode não morrer de amores pelos resultados de Lisboa. Pode estar convencido que o “Tratado de Lisboa” reproduz 97% da Constituição abortada e, por isso, manifestar perplexidade – mesmo que aceitasse a Constituição. Ambos os documentos são uma e a mesma coisa. Se a Constituição foi rejeitada em França e na Holanda, que houvesse a decência de respeitar as regras concebidas por todos os participantes no processo. Sem a ratificação em todos os países, a Constituição estava destinada ao baú das recordações. Mesmo que nutrisse por ela alguma simpatia, este era o destino inevitável. Caso os meandros da política não fossem uma cela escura onde as negociações são secretas e a força das leis nada vale se a vontade política remar noutra direcção.

É aqui que o processo começa a fraquejar, a expor-se a críticas impiedosas dos adversários. Sobram acusações de falta de democracia. Não diria, como denunciam (erradamente) alguns dos críticos, que a União Europeia perde qualidades democráticas com este tratado. A acusação faz sentido quando é ajuizado o processo usado. Retomar a Constituição da União Europeia, mascarando-a com outro nome, é a pedra de toque dos que, quase sem se dar conta, se enredam numa lamentável ausência de cultura democrática. A sua aposta conjunta foi derrotada pelos eleitores holandeses e franceses. Vieram agora ressuscitar uma Constituição que, eufesticamente, tinha sido colocada no “congelador” – para reflexão. Quando nada havia a reflectir, pois o objecto da reflexão devia ter sido enterrado, falasse o direito mais alto que a vontade política. Para piorar o diagnóstico, suspeita-se de um caldo de vontades dos líderes nacionais (e das instituições da União) para que o “Tratado de Lisboa” não passe pelo crivo dos referendos.

Devo dizer que me causam estranheza referendos numa democracia que se diz parlamentar e representativa. No caso do “Tratado de Lisboa”, é bom recordar que não há tradição das Constituições nacionais (e suas revisões) serem servidas nos boletins de votos em referendo. Custa-me a perceber a lógica dos que exigem o mais na União quando são complacentes com o menos nos seus países. Mas adiante. Reitero a opinião de que é um exercício inútil colocar à consideração dos cidadãos a aprovação ou rejeição das revisões dos tratados europeus. Por culpa de quem os cozinha, são um produto complexo, inexpugnável ao cidadão comum. Defender um referendo nestas circunstâncias é conceber o princípio do voto irresponsável (porque desinformado). Se temos referendo assim, só para sossegar as consciências democráticas de uns quantos, entramos numa democracia que se resume a uma formalidade.

E ainda que continue a ser esta a ideia que tenho acerca do assunto, o contexto mudou e agora referendar o “Tratado de Lisboa” deixou de ser um projecto perturbante. É que é tanta a urgência em o ratificar, em segredo, escondido do julgamento popular, que mais sou obrigado a perder os pruridos pessoais contra o referendo. A forma desastrosa como o processo foi conduzido expôs os seus actores a esta inabilidade. E deu trunfos para a raiva latente que se nota nos textos dos adversários do rumo actual da Europa unida. Com outra agravante. Porventura toldados pela fúria, escorregam com facilidade para o erro. Eles, tanto como os artífices de Lisboa que querem esconder a União Europeia dos cidadãos, contribuem para a desinformação. Desmotivam as pessoas a tomarem contacto com a Europa unida – ou, quando o fazem, partem com ideias erradas acerca do que é a União Europeia.

Pelo seu gabarito intelectual, exigir-se-ia maior cuidado na divulgação de informação, mais honestidade intelectual que tanto apregoam. Três exemplos: não fica mais fácil o caminho para uma Europa federal (seja lá o que isso for), sugerindo-se que se dediquem a estudar o federalismo antes de tirarem conclusões precipitadas; Portugal não perde o “seu” comissário: todos os países o hão-de perder durante cinco anos; uma comunidade destas só pode funcionar se as decisões forem tomadas por maioria qualificada. Por quê insistir tanto nos “interesses nacionais” (que, a crer nos críticos, são delapidados pelo “Tratado de Lisboa”)? Hoje votamos de vencido, amanhã estaremos entre os que concorrem para a vontade maioritária. Se não gostarmos, resta-nos a porta da saída.

São as dores de parto da Europa unida. Prolongadas, mas necessárias. Paradoxal Europa, esta: já leva mais de cinquenta anos de vida e ainda lambe as feridas pós-parto.

19.10.07

No rés-do-chão do pensamento



Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.


(Variações em torno de “Opiário”, poema de Álvaro de Campos)

O desassossego. O tremendo desassossego pelas grotescas exibições do pensamento que vegeta pelas caves serôdias de onde arremetem os paladinos da menoridade intelectual. São palavras e actos que ensombram os dias claros do pensamento mais alto. Mas: e o que é o rés-do-chão do pensamento se a sua antítese, o nem sempre clarividente pensamento mais alto, se aprisiona num arrogante distanciamento, brame com pesporrência contra a inferioridade intelectual dos que vegetam nas caves do pensamento?

É verdade que o desassossego vem bater à porta, com fragor, de cada vez que os baluartes da vilania intelectual se fazem notar. Há nesse desassossego reacção instintiva, na impossibilidade de não se fazer notado o gritante pensamento que vem dos baixios. E, contudo, não devia produzir dor sequer. Não devia, sequer, fazer-se notar. Por exalar o bolorento cheiro das arrecadações mentais onde devia estar acantonado. E porque as tonitruantes bandeiras arpoadas no pérfido sinalizar do rés-do-chão do pensamento trazem a mediocridade alheia, chaga que vem de fora para dentro quando devia cessar a sua marcha no limiar do ser.

O mais incómodo nem é o rés-do-chão do pensamento. O que desassossega nem são as exalações perturbantes do ininteligível raciocínio – ou da negação da articulação coerente do raciocínio. Haveria de soar mais alto o convencimento de que pelo raciocínio alheio só podem falar os seus detentores, só eles responsabilizados. Se há condoer que se nota quando a vilania do pensamento esbarra no peito e o estilhaça em feridas, é a errada cicatriz que fica por fechar sem terem sido as dores individuais do pensamento que a causaram. O que mais aflige é cativar a atenção pelo rés-do-chão do pensamento alheio.

É isso que está errado – não tanto os baixios fétidos de onde exala o rés-do-chão do pensamento. O tempo gasto a decifrar os ininteligíveis meandros de um pensamento que desagua num labirinto sem saída. A armadilha de atentar nas palavras alheias de onde goteja o gorduroso pensamento que traz as náuseas e o incómodo por saber que há quem consiga enlamear-se nesses baixios. Esquecendo o seu contrário: os sublimes momentos de exaltação da inteligência, que povoam a literatura, a música, a pintura, a paisagem, a natureza, as pessoas queridas ao perto ou ao longe.

E o que está errado também é a superioridade intelectual dos que denunciam o rés-do-chão do pensamento. Há uma tentação, diria quase narcisista, de ostentar a muita inteligência que é caução para denunciar os que residem nas catacumbas do pensamento. A voragem pela condição de “intelectual”. E, contudo, a pesporrência da vanguarda intelectual é o lado contrário da moeda onde habita do rés-do-chão do pensamento. O que conta não é estar no lado contrário da moeda; é ser parte da mesma moeda. A diligência com que são apontados a dedo os exemplos de menoridade intelectual traz tanto desassossego como o rés-do-chão do pensamento. O pedantismo das elites intelectuais é tão nauseabundo como o que se propõe desmascarar.

O remédio contra todo este desassossego é o ópio do poeta, um metafórico ópio que obriga a ensimesmar. Não será narcisismo, ou um grito de envaidecimento individual que profere a grandeza do ser como antítese das caves do pensamento em que muitos vogam e da dilacerante e zelosa aura de superioridade intelectual dos que zombam da vozearia inconsequente vinda das cavernosas lotas do pensamento. Será talvez um narcisismo inócuo, um paradoxal narcisismo que não se mostra para o exterior. Ou um umbiguismo terapêutico, que se esconde das dores do mundo e do que é exterior ao ser. Poderá ser uma deriva individualista, a recusa em sentenciar os mares que cercam a ilha tão individual. Uma exigência de honestidade intelectual. A fuga dos rios poluídos do rés-do-chão do pensamento, tão insidiosos que não merecem um segundo de atenção.

Será difícil resistir à tentação fácil de esmagar os paladinos do cavernoso pensamento. Mas quando se der conta que a tentação é o roteiro para a envaidecida liturgia da superioridade intelectual, abrem-se de par em par as janelas para a fuga ao que é exterior.

18.10.07

A trilogia das previsões: economistas, meteorologistas, astrólogos


Gostava de ser economista. Descobri o gosto pela economia quando estava a terminar a inditosa licenciatura em direito. Já não havia tempo para voltar atrás. Até porque a matemática tinha ficado no nono ano de escolaridade, o que me retirava conhecimentos para usar uma ferramenta crucial dos economistas – os modelos econométricos. Na investigação que faço, quando deparo com textos de economistas há partes que são um mistério insondável: a sucessão de equações que provam um certo argumento, usando linguagem matemática com o rigor que os cultores dessa linguagem certificam. Essa linguagem é um alfabeto estranho para mim. Tal como se me detivesse diante de um texto escrito em cirílico.

Também gostava de ser meteorologista. Interessam-me os fenómenos atmosféricos. Como se desenvolvem tempestades. A dinâmica das frentes que chegam do Atlântico, carregadas de chuva e vento. Observar a evolução de depressões que se formam no interior da península ibérica e que desembocam em violentas tempestades de Verão, com trovoadas medonhas e aguaceiros que parecem despejar toda a água acumulada nos céus. E observar como as condições do tempo variam na geografia de lugares diversos na Europa. Tentar perceber, pelas imagens de satélite, como vai estar o tempo – antes mesmo de ler as previsões escritas pelos meteorologistas.

Há pouco em comum entre a economia e a meteorologia. Coincidem na apetência para as previsões. Os meteorologistas fazem da capacidade de previsão parte importante do seu dia-a-dia. As pessoas querem saber que tempo vai fazer amanhã, ou daqui a uns dias quando forem viajar para outro lugar. Consultam os boletins meteorológicos. E se procuram desmultiplicar a informação, visitando diversos sítios com previsões meteorológicas, o mais certo é encontrarem tantas previsões quantos os boletins consultados. Ficam a saber que os especialistas da previsão do tempo aprenderam por diferentes cartilhas. Cada cabeça, sua sentença meteorológica. Às vezes as previsões são um falhanço. Os modelos matemáticos e a experiência acumulada, feita da rotina do tempo que costuma fazer, traídos pela imprevisibilidade dos elementos, num desvio inesperado que baralhou as previsões.

Com os economistas, a tentação de antecipar o futuro depara-se com problemas semelhantes. A diferença é que as suas previsões são sazonais e projectam o que pode acontecer no ano que vem. Usam sofisticados modelos econométricos que dependem de variáveis infindáveis e confiam no rigor milimétrico da matemática. Entre os economistas, as cartilhas também terão sido muito diferentes, a atestar pela divergência de previsões quando se deitam a perorar sobre o que pode acontecer com a economia de amanhã. É então que se assegura, com alguma ironia à mistura, que dois economistas à mesa da discussão produzem três opiniões diferentes – e todas elas se revelam erradas quando, mais tarde, é tempo de comparar os dados da realidade com as previsões feitas.

(Um exemplo: ontem foram divulgadas previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a economia portuguesa para 2008. São mais pessimistas do que as previsões do governo e do Banco de Portugal. Menos crescimento, mais inflação, mais défice orçamental. A excepção é no desemprego, que para o FMI será mais baixo do que nas estimativas do governo e do Banco de Portugal. O leigo pergunta: como podem diferir tanto as previsões? Estarão todos a observar o mesmo país? Haverá dados ignorados por alguma das entidades que se aventura a fazer as previsões, induzindo-as em erro? Ou algumas dessas previsões – as mais optimistas – são engodo para iludir as pessoas, um convite a redobrar a confiança no futuro, mas apenas um “wishful thinking”. E que raramente se confirma. O que é mais interessante é que, ano após ano, acabam por se aproximar mais da realidade as previsões do FMI, ou da Comissão Europeia, do que as elaboradas pelas instituições nacionais. Não será, pois, só por pirraça pessoal se disser que confio mais nas previsões do FMI. Primeiro, por maior competência técnica. Segundo, porque o distanciamento joga a seu favor. Desconfio das motivações políticas dos técnicos nacionais que manobram os modelos que resultam em previsões. Desconfio que tenham o trabalho encomendado, para satisfazerem os interesses dos políticos que os tutelam.)

Admito que a tentação de adivinhar o futuro é grande. Uma tarefa homérica, diria. Que nem a tão elevada sofisticação de modelos que usam a infalível matemática chega para obviar. É essa a beleza do futuro: a imprevisibilidade, a incerteza, os insondáveis mistérios que encerra. Os que se deitam a adivinhar o que vai acontecer são os desmancha-prazeres que revelam uma surpresa que assim o deixa de o ser. É que, ainda por cima, resvalam frequentemente para o erro, na observada percentagem das previsões que desaguam  no erro. Acontece mais com os economistas, talvez por não terem o hábito diário das previsões.

É então que percebo que fiz bem em não ser economista. Eu, que tanto gozo com a astrologia, vejo uma analogia diante dos meus olhos: economistas e astrólogos atrelados na bazófia das previsões, raramente acertadas.

17.10.07

Do orçamento, para desmascarar (mais um) embuste


Até podem chamar mania da perseguição, que eu confirmo. Mas dói-me quando os políticos se embelezam com declarações pomposas, mas fátuas, que escondem debaixo do véu o que convém permanecer escondido. Andou por aí aplauso ruidoso à gestão do orçamento deste governo. Já anunciaram que o défice orçamental vai ser inferior (3% do PIB) ao que tinham previsto no final do ano passado (3,3%). E reclamam o estatuto de heróis, massajando os impérvios egos pelos dons de presciência que nos ofereceram.

É provável que os funcionários do ministério das finanças tenham andado semanas a fio de máquina calculadora na mão (versão prosaica para os complexos modelos econométricos manipulados por computador) fazendo e refazendo as contas para anunciar a boa nova. Pela primeira vez em muitos anos, o défice fica abaixo das previsões. Dantes, as previsões saíam furadas. Ficava-se com a impressão que ou os orçamentos estavam mal feitos, ou se gastava muito acima do previsto, ou os contribuintes se especializavam na sublime arte de fugir aos impostos, ou o exército de economistas com grandes dotes premonitórios era inepto. Agora é que estamos bem entregues. Uma equipa vigilante, com as contas bem feitas, que se deu ao luxo de gastar menos que o previsto.

Tenho para mim – que não consigo prescindir do cepticismo militante em relação à trupe que governa – que tudo isto não passou de uma cuidadosa manobra, bem arquitectada para produzir a enxurrada de elogios. Ninguém me convence que abusaram da prudência, quando há um ano deram corda aos modelos econométricos e saldaram a confecção do orçamento para este ano com uma previsão de défice de 3,3%. Aposto que já sabiam na altura que essa meta era alcançável com facilidade. Preferiram errar por excesso, pois estamos é habituados ao catastrófico efeito das estimativas por defeito. A imagem – a sempre sagrada imagem – sai melhorada quando se mostra que ao chegar ao fim do ano sobrou dinheiro. Depois, os governantes ficam à espera do aplauso – e, de preferência, unânime.

Se me é permitido, eu não aplaudo. Em vez de me desfazer em louvores e agradecimentos pela notável gestão do orçamento, desconfio. Com as exaustivas operações de cosmética que esta gente faz à sua imagem pública, ninguém me tira da ideia que as expectativas foram colocadas numa fasquia baixa, porque é mais fácil superá-la do que ultrapassar um desafio exigente. É a via dos medíocres. E, no entanto, mais me parece que são tratos de polé que a gestão do dinheiro público continua a sofrer. Habituados a nivelar por baixo, apoderados por uma certa tacanhez colectiva, ficámos (quase) todos entusiasmados porque o défice estará uns míseros 0,3 pontos percentuais abaixo do previsto.

No meio da excitação colectiva, alguns comentadores conseguiram decifrar o emaranhado de números, desmascarando o embuste. As contas públicas melhoraram, mas os remédios aplicados cheiram a batota. O problema é teimosamente gastarmos mais do que os recursos amealhados. A solução é a mais fácil: cortar nos investimentos (o que, em si, não é mau: sempre se evitam inúteis despesas que dão a imagem de um Estado balofo sem haver razões para estulta grandiosidade) e aumentar o roubo dos cidadãos, legalizado via impostos (que aumentaram, como têm aumentado desde há vários anos). As despesas públicas viciosas e parasitas – as “despesas correntes”, que a maioria dos economistas considera “rígidas”, isto é, não podem deixar de se realizar – essas subiram. Contrariando mil e uma promessas, repetidas até ao cansaço da audição, de que iriam diminuir e muito, no solene altar das reformas do Estado anunciadas com tanta pompa e circunstância. Este é o bilhete do insucesso do governo na gestão do orçamento. Com a estratégia da mentira repetida à exaustão, que de tão repetida passa a engalanar-se como verdade.

Aos poucos que tiveram a honestidade intelectual de denunciar o embuste, faltaria explicar porque escasseia a coragem para cortar a eito na despesa corrente. Primeiro, políticos profissionais alimentam-se de uma administração pública com tamanho de elefante. É aí que se acoitam quando o tapete do poder sai debaixo dos pés. Segundo, cortar nas despesas correntes é emagrecer as clientelas que dependem desse cheque generoso, com uma desagradável dupla consequência: com menos clientelas que chegam ao gabinete do ministério de mão estendida, é menor a ostentação do poder; e se as clientelas habituadas a lautos manjares à mesa do orçamento forem disso desabituadas, podem, por vingança, traficar influências para que outros venham tomar conta do trono.

Aos que pagam impostos, reservado o papel de palonços nesta peça lamacenta.

16.10.07

Um dogma: nos filhos há todo um lastro que vem dos pais


Há duas maneiras de dizer isto: faz hoje três anos que nasceu a minha filha; ou: faz hoje três anos que fui pai. Sei que as duas coisas são causa e efeito. Que tanto faz formulá-las de uma forma ou da outra. No entanto, a escolha de uma das fórmulas não é inocente. Suspeito que muitos progenitores que optam pela primeira no seu íntimo pensam na segunda. É natural que o façam. A inauguração da paternidade é um marco na vida, uma página dobrada, um dia que fica retratado para a eternidade, com as memórias bem frescas que perduram anos a fio.

Diz-se que um filho é um acto de generosidade. Uma vida legada, muito de nós – os pais – posto na vida gerada. E depois vem o relambório dos manuais da puericultura: todo o amor consagrado aos filhos, quase como se os pais fossem levados a um desprendimento da vida própria, dedicados agora a viver apenas para e em função dos filhos. Os filhos seriam pequenos ditadores a marcar o passo dos pais. Uma ditadura feliz, porque pai nenhum questiona o amor depositado no filho. Contudo, há uma desconformidade nos usos da paternidade. É que estamos habituados a ver nos filhos o nosso prolongamento. São clones imperfeitos das nossas virtudes (e só nos agrestes momentos é que vem o reconhecimento, por íntimo que seja, que há neles semeados alguns dos defeitos que em nós habitam). As façanhas dos filhos são glorificadas, como se no âmago houvesse ali auto-comprazimento dos progenitores.

Dizer-se que um filho é acto maior de generosidade choca com a ideia – escondida – de que um filho é um acto sublime de egoísmo. Quando se confunde o amor devido ao filho com a ideia de que ele é o nosso prolongamento, destila-se a exaltação de um narcisismo reprimido (ou não). Como é enternecedor ir às reuniões de pais do infantário e ver o desfile de rivalidades inconsequentes dos paizinhos que não conseguem calar as façanhas dos petizes, sempre um pouco mais além que a façanha acabada de descrever pelo paizinho que terminou de orar. É um concurso que mostra criancinhas com dotes fantásticos porque – adivinha-se – foram gerados por quem foram.

Aceita-se que um filho tem a genética dos pais, sob pena de negação da ciência. E que no crescimento dos filhos há muito dos pais que vai sendo incorporado – e dos avós, de outros familiares, dos amigos, dos professores. O que se esquece é que uma criança é um individuo, ela também uma ilha com o seu ADN, que mesmo sendo uma mistura dos pais é nessa mistura uma individualidade própria. Reconforta os pais sagrarem os filhos porque são o produto do seu amor – ou de um arrebatamento da paixão, ou de um acidente de percurso, o que quer que seja. A contradição é que tão depressa o acto supremo de amor, num desprendimento que se convencionou elevar ao altar do altruísmo, assenta na poeira do egoísmo imperceptível. Sim, há num filho essência dos pais. Mas um filho é uma ilha que desagua na sua individualidade. Porque temos que encontrar em tudo o que um filho é, traços que vêm do pai ou da mãe? Quantas vezes o narcisismo reprimido dos pais se desnuda na exaltação do filho, denunciando o ensimesmar dos pais?

Agora que passam três anos e olho para trás, o que celebro são todos os passos que cimentam o crescimento diário da minha filha. Recordar os sedimentos desse processo – o gatinhar, os primeiros passos, o esboço de linguagem que evoluiu na articulação das primeiras palavras, o afecto, o simples olhar enquanto dorme, as brincadeiras que me permitem descer à infantilidade da idade dela, até as reprimendas necessárias depois da impertinência ou da asneira mais surpreendente (ontem: um telemóvel assado no microondas...).

Quando tudo isto assoma à superfície não consigo reprimir um arrepio da pele. Quero que seja sentido como um acto de desprendimento, olhar para ela como alguém que vai dando os seus passos num crescimento que tem muito de auto-aprendizagem. Na recusa de ver na filha um espelho de quem a gerou, porque aí fala mais alto a recusa maior de impregnar a filha com o egoísmo típico dos progenitores.

15.10.07

Um intruso por dentro


Às vezes conseguia-se ver como se estivesse por fora de si. Olhar de fora para dentro – ou se houvesse um espelho que reflectisse a sua imagem, uma crítica fotografia do que não conseguia ver quando se investia na sua pessoa. Ao olhar por fora, por vezes desconhecia-se. O que via era um intruso que tomara conta do seu corpo. Via gestos autómatos que lhe traziam o desconforto. Havia palavras ditas que profundamente o desgostavam. Actos de que não se orgulhava.

Era então que sentia uma vontade indómita de sair de fora de si e à sua interioridade regressar. Nem que fosse para se resguardar da fotografia tirada do exterior, daquela fotografia que dava uma imagem de fealdade que tanto o atormentava. Ou regressar à carne já gasta dos anos vividos, só para asfixiar a sensação de que em si habitava um intruso. Nisto, navegava num oceano de interrogações. Se um intruso havia dentro de si; ou se o que estava convencido de ser era o intruso, quando afinal o suposto intruso o não era, mas antes a imagem fidedigna – mas reprimida – da sua essência. Perdia dias nestas deambulações pelos meandros do ser, que só traziam mais dúvidas que respondiam às interrogações levantadas.

Ficava perturbado pela sensação que o estranho era ele. Atormentado pela sensação de que afinal não era o que estava convencido de ser. Pensava: todos temos uma imagem do que somos, acreditamos naquilo que pensamos ser. E quando assomam as dúvidas sobre a essência do que em nós vagueia, todas as palavras perdem sentido, as coisas oferecem-se com o odor inabitual, e até os pontos cardeais perdem o devir da bússola. Enquanto o corpo vai apoderado pelo desnorte, as ideias batem forte contra o peito, ensanguentam-no na voracidade das coisas que jorram intensas e diferentes do formato preconcebido que fermentava a rotineira passagem de testemunho entre os dias repetitivos.

A perturbante imagem do intruso por dentro consumia-o – tempo e forças. Sabia que todos os instantes levados pela dialéctica poderosa entre o que julgava ser e a ácida sensação de nele habitar algo de tão diferente, eram instantes que adensavam o labirinto onde se metera. As forças exauridas a cada vez que ensaiava o exercício. Mais os dias passavam, mais as interrogações se acastelavam sobre a cabeça, menos a capacidade para cicatrizar as feridas que abriam de cada vez que estalava na boca a descoberta dos sedimentos do intruso em si. A carne viva expunha-se, dobrava a pele protectora à espera das salgadas e dolorosas dores da vida nela acamarem. Uma doentia vocação para condoer os dias fartos da trivial sucessão entre si.

Por mais nítida que fosse a sensação de que um estranho partilhava a sua existência, não se conseguia habituar à ideia. Revisitava os tempos idos, as pessoas, as palavras ditas, os actos cometidos. Revia-os à luz do intruso que se convencia, a cada passo, que afinal talvez fosse ele. Perguntava se as pessoas, as palavras, os actos tinham o mesmo significado pela lente do intruso. Ou então interrogava-se se acaso teriam essas pessoas, ou as palavras, ou os actos obedecido ao mesmo roteiro se, no remoto tempo repisado, o intruso em si tivesse sido o protagonista. Desconfiava que no ensaio de retorno a outrora havia sinal de revisão do tempo emoldurado. De tanto recusar fotografar o passado, ecoava a perplexidade por percorrer o caminho que sempre negara.

Eram as pessoas, as pessoas mais próximas, que reforçavam a perturbante dúvida do intruso por dentro. As pessoas retratavam-no como ele julgara não ser. A certa altura, na peregrinação permanente de si, já começara a duvidar da densa camada que sedimentava os anos vividos, se tudo aquilo tinha acontecido – todas as pessoas, ou seriam outras, tal como ele, desconhecidas. Talvez fosse o tempo biombo que desdobra a existência em duas dimensões. A que traz uma anestesiante sucessão dos dias, os planos sempre adiados, promessas de mudança por cumprir. E a outra, exterior palco de onde é possível sair do corpo e ver como era actor de si mesmo. Lá de fora, onde dava conta do intruso que habitava em si.

De tanto se debater contra a poderosa imagem do estranho que afinal era, a certa altura nem sequer sabia se era o que julgava ser ou já o intruso que discernia ao olhar-se de fora. Ou ainda nada disso.

12.10.07

O outro ângulo


Queria confessar a inquietação que me causou ter percebido que estive do mesmo lado da barricada dos comunistas. O culpado foi o primeiro-ministro mais a sua arrogante maneira de ser, incapaz de aceitar aqueles que dele divergem com uma olímpica reacção de quem sabe conviver com as regras do jogo da democracia. Depois de ter escrito sobre a irritação do homem que não gosta de ser confrontado com apupos quando se pavoneia em mais um anúncio pomposo de obra ou projecto que não sabemos se algum dia haverá resultado, percebi como essa táctica suicida do timoneiro teve o lado pérfido de me colocar momentaneamente ao lado de comunistas. Só depois senti o incómodo.

Logo no dia seguinte houve mais uma peça a acrescentar à indignidade deste governo. Dois polícias à paisana entraram no sindicato dos professores, sucursal da Covilhã, e desfiaram um interrogatório. É que no dia seguinte o intocável timoneiro ia de visita à escola local onde estudou e ficava mal estragar a festança com manifestações antipáticas. Mais um episódio sintomático da deriva totalitária deste governo, ou de como perpassa a confusão entre maioria absoluta e exercício do poder, com este a resvalar frequentemente para o abuso de poder. Pelo meio, para descompor ainda mais as coisas, os comunistas aproveitaram a ocasião para se vitimizarem, trazendo mais amantes da liberdade para o seu lado.

Digo, amantes da liberdade, da liberdade genuína. Não da liberdade abastardada que ecoa da retórica dos comunistas – e, porque não dizê-lo, dos socialistas amesendados no poder. É aqui que se entreabre a porta para olhar estes acontecimentos pelo outro ângulo. Que, é claro, não é o ângulo que interessa aos servos do governo, porque eles têm mostrado que convivem sem dores de consciência com entroses à liberdade de expressão.

É nessa altura que sinto como caí na esparrela. Quando revelei a tentação de exibir solidariedade com os comunistas, por causa da sintomática intolerância do timoneiro primeiro-ministro, estava toldado pela ingenuidade e tomado pela irritação de ver o chefe do governo irritado com os assobios que lhe dirigiam em público. Esqueci-me, por um instante, que os comunistas não são exemplos de defesa da liberdade. Sei que, diante destas palavras, alguns comunistas (e outros apanhados na ingenuidade de quem se engana perante o que é defendido pelo catecismo comunista) protestam: dirão que foram penhores da luta pela liberdade nos sombrios anos da ditadura. Eu direi que o que me interessa não é a luta contra a ditadura; é a ideologia, o exemplo que defendiam, as atrocidades contra as liberdades que foram cometidas na sacralizada União Soviética. O farol é a antítese genética da liberdade.

Ora, quem não pode desfilar como paradigma das liberdades perde razão quando um adversário atenta contra a liberdade que o regime lhe garante. Não estou a sugerir que eles sejam merecedores de uma liberdade amputada por serem geneticamente adversários das liberdades. Só estou a insinuar que o roto não tem razão de protestar contra quem vai nu. Pode ser de uma conveniência táctica bramir contra os comportamentos indignos do chefe do governo e de outros funcionários menores que querem brilhar, mostrando às chefias que são mais papistas que o papa nesta claustrofobia das liberdades em que vegetamos. Logo de seguida surge uma interrogação, um exercício especulativo: acaso acampassem no altar do poder, conseguiam os comunistas reprimir os instintos que atropelam as liberdades? O passado e o catecismo ideológico darão resposta.

O que de me desgosta, no rescaldo destes lamentáveis acontecimentos, é que continuamos, como povo, a tolerar atentados às liberdades. Incapazes de enveredar pela emancipação do autoritarismo, tantas vezes confundido com mãos livres para governar, para decidir, para fazer. Uma herança de quarenta e oito anos de ditadura. Chego a pensar que somos, como povo, geneticamente avessos às liberdades. A prova está no que se passou, com a triste irritação do primeiro-ministro com os manifestantes, com a “visita de cortesia” dos polícias à paisana ao sindicato dos professores. E de como tudo se resume a uma rivalidade entre os socialistas no poder e os comunistas que os incomodam com a agitação social em que são especialistas. A rivalidade entre duas facções que, quando puxadas ao limite, são geneticamente alérgicas às liberdades – quando do exercício das liberdades emergem palavras dissonantes.

Tudo isto me soa estranho. Sinto que a doença tomou conta de tudo. O ar irrespirável está aí para o atestar.

11.10.07

Nitin Sawhney, "Nadia"

Música espiritual (Nitin Sawhney, "Nadia")

As buscas sonoras podem trazer gratas surpresas, novidades que abrilhantam o palco da criatividade, mostrando um terreno infinito por explorar. Às vezes, escasseiam as novidades que seduzam a audição. É nessas alturas que retomo propostas já conhecidas, arquivadas na memória, já não escutadas há largo tempo. Por estes dias revisitei Nitin Sawhney. Um músico inglês de origem indiana, ecléctico, que faz a fusão de sonoridades diversas, sem esconder as suas origens indianas.

Há músicas de Nitin Sawhney que me fazem mergulhar nas profundidades do ser. É quando o músico mostra temas instrumentais, onde surgem tímidas vozes que são elas mesmas suportes que embelezam a composição, sons guturais que actuam como instrumentos musicais. Músicas que me atiram para sítios exóticos, onde a perenidade do ser encontra os seus sedimentos. Diria: uma digressão pelos alicerces do ser, algum misticismo que os sons suaves e misteriosos perfumam com doçura. Sim, uma música espiritual. Sem resíduos de religiosidade.

Alguns desses sons evocam paisagens bucólicas onde os ecos do silêncio trazem escondidas as melodias que povoam o cérebro. Lugares onde a vista se demora, convocando a contemplação das coisas, com os olhos bem abertos retendo todos os detalhes da vasta paisagem que se estende tão longe que o horizonte parece não ter fim. Os sons ecoam incessantemente, o fértil campo de rosas onde o corpo rebola, perfumando-se. O refúgio necessário nas horas em que a deriva para o mais profundo do ser é uma exigência indeclinável. A música de Nitin Sawhney – aqueles temas instrumentais, altares de uma calma conquistada – feita de encomenda para palco da introspecção.

A inspiração indiana à mostra, que se funde com outras sonoridades ocidentais, modernas. Nisso se encontra também a sedução das propostas musicais de Nitin Sawhney. Dizem que o exílio nas profundezas do espírito encontra o seu zénite na misteriosa Índia, altar sagrado para o encontro com o recôndito lugarejo que alberga os sedimentos desconhecidos da existência. Só que não é imperativo demandar a Índia para marcar encontro com os lugares inabitados que povoam o território desconhecido do ser. Todos temos as nossas Índias, que podem nem ser os geográficos expoentes que a Índia oferece. Se é verdade que há músicas que moldam o estado de espírito, encontro em Nitin Sawhney um dos expoentes do encontro marcado com as profundezas do ser.

A musicalidade funde-se com o ensimesmar temporário. Se há exílio pelas calçadas que só o ser conhece, e se esse exílio carece de companhia musical – o substracto que acama o povoamento da introspecção – os sons de Nitin Sawhney são o vestuário feito à medida. As ideias parecem fluir com um discernimento invulgar, alimentadas pelo repouso do espírito emoldurado pelas sonoridades arrastadas e exóticas. Os ecos do mais profundo do ser, imperceptíveis nos dias comuns, revelam-se na sua cristalina forma. É a música espiritual que se serve como sua musa inspiradora. Um chão polvilhado de flores, uma caleidoscópio de odores intensos que desvelam os segredos ainda escondidos nas entranhas nunca visitadas. Não há ameias tão altas que sejam obstáculos. Tudo se descobre na sua nitidez, como se houvesse a magia dos sons que deixam à mostra o que outrora era uma confusa amálgama, um enigma sem solução.

Nas Índias que vogam no espírito, acompanhadas pelas sonoridades sedutoras de Nitin Sawhney, descubro o ser na plenitude que julgava ausente. Ajudam os sons a ecoar as facetas escondidas. Um processo de envelhecimento, suave e sereno, acomoda o tempo que não é a agreste árvore que denuncia os ponteiros do relógio a caminho do final.

10.10.07

O Che é só um produto de marketing


É curioso como até os que se aperaltam com a laicidade atrelada às ideias se deixam seduzir por misticismos, mitos convenientes que se entrevêem numa condição divina. Este assunto interessa-me, tão debruçado nas águas gélidas do ateísmo. De resto, tudo me separa destes amantes das revoluções latino-americanas, ainda cientes que Cuba é um regime recomendável – ou, admitindo que não é uma democracia, não a diabolizam. E interessa-me por reparar que também têm os seus deuses, ainda que a cegueira ideológica os impeça de ver como os heróis vêm oferecidos no papel de deuses.

Ao passarem quarenta anos sobre a morte de Che Guevara, soaram as trombetas do lirismo de certas esquerdas ainda desorientadas pela orfandade internacional. Che Guevara: o mito, o ícone que lutou pelos oprimidos, contra os interesses imperialistas e o nefando capital que, braço dado com o poder corrupto e os serviços secretos, nunca se cansaram de espezinhar os interesses do povo. Quarenta anos depois de cair em combate – ou “cruelmente assassinado”, segundo os seus indefectíveis – povoa o imaginário destas esquerdas como mostruário daquilo que elas nunca conseguiram ser quando o poder político lhes veio parar às mãos. Para além de ícone de um romantismo letal, Che Guevara invade as t-shirts dos adolescentes que, adivinho, na maioria das vezes nem sequer sabem quem foi, e o que fez, o barbudo retratado na camisola.

É isso que ele é: Che Guevara, mito e instrumento de marketing. Não que estas esquerdas sejam cultoras do marketing, que pertence ao aparelho capitalista que elas renegam. Reconforta-as saber que há um nicho de mercado que se serve da face do eterno guerrilheiro para o disseminar na coisa cosmopolita. Que interessa se tanta gente nem sabe que façanhas fizeram de Che Guevara um herói? Aliás, o melhor será ocultar a biografia do guerrilheiro, pelo menos aquela parte em que, depostos os aliados do imperialismo yankee, Che Guevara foi um torcionário impiedoso que, a sangue frio, tirou a vida a opositores e até a antigos companheiros que se haviam desviado da ortodoxia que a pandilha esboçara quando desceu da Sierra Maestra para Havana.

A glorificação do ícone prova a viscosidade patética do relativismo da análise. Ora temos ditadores denunciados pelas atrocidades que cometeram, ora temos românticos heróis que também mataram arbitrariamente e são elevados a um altar divino de onde sobra um culto de imagem que não se diferencia dos seguidores de religiões e anjos e santos e quejandos. Che Guevara, à sua maneira e com as particularidades ideológicas de quem lhe apascenta o culto hagiográfico, é um santo da devoção de muita gente. Daquela gente que fecha os olhos às atrocidades, ou acusa de mentirosos os que descobrem que Che foi sanguinário e implacável, prolongando as tácticas de guerrilha para a governação de Cuba. E se se diz que a ignorância é o alimento da fé – quando a fé encandeia o discernimento e leva os crentes ao limiar do irracional – que se dirá quando os seguidores do ícone se deixam cegar pela revisitação da história que nega os crimes que, está documentado, Che Guevara cometeu?

Os heróis só o são depois de mortos. Algumas esquerdas notabilizam-se por delirantes teorias da conspiração que julgam reveladoras de como o “grande capital” tudo manipula. Vi há dias pichado numa parede o seguinte: “www.usademolitions.com” seguido de “11 Setembro 2001”. Os imaginativos decoradores de imóveis urbanos davam a entender que tudo não terá passado de uma orquestração oficial para implodir as torres gémeas, sacudindo a culpa para os néscios fundamentalistas islâmicos e empurrando os Estados Unidos para acções militares no estrangeiro, que os stocks de armas se acumulavam nos armazéns das empresas que as produzem e os lucros estagnavam. Houvesse a mesma febril imaginação por aqui, também se podia interrogar se o guerrilheiro não foi morto por balas amigas, na avaliação de que morto servia mais a causa do que vivo, na antecipação da beatificação revolucionária que sobre ele iria cair.

Che continua a alimentar o imaginário de muitos revolucionários descontentes com o actual estado do mundo. E a servir de inspiração a arrebatamentos revolucionário-populistas que se deixam convenientemente cobrir pelo lirismo do guerrilheiro. Não é só pelas t-shirts envergadas por desconhecedores adolescentes e menos adolescentes que se confirma Che como produto de marketing. É-o também por ser a marca de água do franchising que cimenta alternativas revolucionárias que desmentem o continente americano como quintal dos Estados Unidos.

Amanhã, quando passarem quarenta anos e um dia do assassinato do revolucionário, só os indefectíveis e os ingénuos que envergam as t-shirts da moda se lembrarão dele. E os oportunistas que hão-de continuar a chorar a sua morte, só porque ela foi instrumental aos regimes que se dizem inspirados em alguém que não deixou doutrinação política. Estranho mundo este, em que as esquerdas tão avessas ao horrífico capitalismo entronizam um herói só para fazerem dele utensílio de marketing dos respectivos interesses.

9.10.07

O intocável


Um dia o impensável haveria de acontecer: eu, solidário com comunistas! Há um culpado na bizarria: o primeiro-ministro, que insiste na sua aura de messiânica personagem que nasceu para nos salvar de um destino malfadado, o inversor de um fado tristonho que nos traz atados à ausente auto-estima. Um excelso governante dotado de capacidades extra-sensoriais, quase um prestidigitador embrulhado num papel cintilante, feixe esperançoso para extrair as lusas terras do cadafalso onde pareciam estar irremediavelmente enterradas.

Personagem com tamanhos predicados não merece contestação. Só encómios, e muitos, todos os dias os enaltecimentos a jorrarem com abundância, nunca as vénias a serem excessivas. É compreensível que o senhor primeiro-ministro se incomode com a ingratidão dos dissidentes das suas políticas benfazejas. Onde o respeitinho devia nortear o comportamento de todo e qualquer cidadão que se preze, temos a flagrante injustiça das manifestações orquestradas para assobiar o senhor primeiro-ministro. Os malfeitores deviam ser exilados, por não merecerem ser aspergidos pela governação salvífica. São malsãos, estes comunistas que andam de norte a sul a perturbar as solenes cerimónias de inauguração disto e daquilo, as entregas de computadores aos petizes do décimo ano, até as reuniões partidárias nas quais o senhor primeiro-ministro despe a casaca de governante e veste a de líder de facção política. É que às vezes a democracia é um obstáculo, quando os limites da decência são ultrapassados.

Já não é a primeira vez que o timoneiro da nação aparece irritado diante das câmaras, protestando contra quem contra ele protesta. Diz que está cansado da perseguição dos comunistas, que estragam os momentos de consagração pública encenados com uma minúcia milimétrica. Argumenta que uma coisa é protestar, outra é ser insultado. E que “o país” está cansado da sanha persecutória dos comunistas, sempre a mesma estratégia de guerrilha por que já passaram outros primeiros-ministros. Questão prévia: se me é permitido também exprimir algum cansaço por alguma coisa, é por esta mania dos políticos se fazerem passar por porta-vozes do “país”, como se “o país” fosse uma massa homogénea e todos pensássemos da mesma forma – e, por coincidência, para o mesmo lado de onde sopra o pensamento do primeiro-ministro. Depois, que se saiba, quando se é assobiado isso não é insultuoso. Ser insultado é apanhar com palavras feias, que arremetem contra a honra do ofendido. Os pregões ensaiados pela turba comunista não resvalam para a ofensa pessoal. Podem incomodar, sobretudo se não prestarem homenagem à personagem assobiada, mas ofensivos não são.

Já não é a primeira vez que o timoneiro da nação perde aquele sorriso gelatinoso, pontuado pela pesporrência de quem fala com a convicção da sua predestinada aura, e protesta contra manifestantes que protestam contra ele. Vem ao de cima a sua verdadeira têmpera: a incapacidade para lidar com a crítica, o acantonamento dos dissidentes, logo remetidos a uma condição infra-secundária, desvalorizados, ostracizados. Tudo dito com uma irritante irritação que sublinha a ausente cultura democrática do senhor primeiro-ministro. Quem lida mal com a opinião contrária, ainda por cima ocupando o cargo que ocupa, é merecedor da maior desconfiança. Anteontem, o cúmulo da desfaçatez: instruções dadas para um grupo de sindicalistas serem calados e afastados do perímetro onde o senhor primeiro-ministro iria abrilhantar uma cerimónia de inauguração de uma fábrica qualquer perto de Montemor-o-Velho. Primeiro, a polícia retirou as faixas que exibiam o protesto dos sindicalistas. Depois foram afastados para local onde os ouvidos do senhor primeiro-ministro não fossem incomodados com palavras de protesto e as vaias.

Para piorar o diagnóstico, de cada vez que o timoneiro escorrega para a irritação contra os que discordam dele é um tiro no próprio pé. Pela parte que me toca, que não consigo esconder uma embirração cada vez maior com a personagem, isso agrada-me. Ao estalar o verniz, fica à mostra o que a figura verdadeiramente é. Há quem diga que a sua imagem é cuidadosamente tratada, que não há um único passo que não tenha sido estudado ao milímetro. Discordo da análise. Se assim fosse, o senhor primeiro-ministro dava a cara perante os manifestantes, ia falar com eles, usava a sua enorme capacidade argumentativa (pelo menos é o que vai embelezando as hagiografias que dele fazem) e dobrava o cabo das tormentas por cima. Em vez disso, esconde-se e manda calar os manifestantes. Não é lição de cultura democrática. E como se um tiro não bastasse, outro é disparado para o pé que ainda não sangrava: recorda que as tácticas dos comunistas também afligiram os seus antecessores, sem excepção. Só que nenhum deles mandou silenciar manifestações, nenhum deles exibiu uma irritação de quem não suporta dissidências que ponham em causa a aura de que se julga imbuído.

Já tinha há muito esta percepção: o homem é um embuste. Com a passagem do tempo, reforço o diagnóstico. E não lhe perdoo por ser o fautor do que julgava impensável: eu, solidário com comunistas.

8.10.07

Espanha, a monarquia mefítica


Para dar sequência ao texto de sexta-feira. Então desdenhando da república, da república aqui instalada. Para reequilibrar e afastar possíveis conotações com o lado contrário, hoje renega-se a monarquia. Pedindo de empréstimo aos espanhóis o exemplo pestilento de monarquia. Vai ardendo a polémica, porque alguns juízes zelosos decidiram encetar perseguição judicial a radicais que, em jeito de provocação, queimaram em público fotografias de suas excelências o rei e descendência.

Convém fazer um ponto de ordem: o acto de queimar o que quer que seja – fotografias de personas non gratas, bandeiras de países diabolizados, livros, revistas ou jornais que satirizam ídolos com pés de barro – é uma grotesca exibição que cultiva intolerância com uns laivos de violência. É um daqueles actos que qualifica quem os comete. Não sou da opinião que haja lugar a repressão – policial ou dos juízes – sobre quem exerça a sua liberdade de opinião através de um acto impregnado de violência como o é a queima do que quer que seja. Desde que a segurança dos outros e os seus haveres não sejam postos em causa, trata-se de permitir que a liberdade de expressão fale através das suas inúmeras manifestações.

Se há radicais que se sentem incomodados com a anacrónica monarquia espanhola e decidem expressá-lo queimando fotografias de membros da casa real, é um direito que lhes assiste. A pífia monarquia que se debate com perseguições do aparelho judicial a quem o faça, dá uma triste imagem de si mesma. Uma imagem que não é muito diferente dos radicais que quer combater. Com uma diferença de vulto: é que os radicais servem-se das armas que estão à sua disposição por não estarem na posse do aparelho do poder. Já os baluartes da monarquia contestada são os detentores do poder, pegam nele para perseguir os que ousam provocar beliscando a imagem deificada do rei e da descendência que há-de herdar a coroa. Coincidem na intolerância. Os radicais, exibindo os maus fígados quando incensam fotografias de sua excelência o rei (sem lugar a genuflexão). Os guardiães da monarquia, porque criminalizam a afronta que consideram a queima de fotografias, decerto porque a casa real é um símbolo da monarquia. Por ser inadmissível beliscar os símbolos, ou os alicerces da divinizada monarquia ficam hipotecados, exerce-se a repressão que não casa com o Estado de direito.

Causa-me confusão a retórica dos símbolos, de como são intangíveis, inatacáveis. Pior ainda quando pessoas, tão de carne e osso como os “súbditos” que lhes devem sepulcral vassalagem, são entronizadas no sagrado lugar de símbolos. É que uma pessoa arvorada em símbolo perde qualidades humanas. A responsabilidade que repousa sobre os seus ombros é de uma violência inaudita, porque arcam com o peso sobre-humano de serem o farol que inspira a dedicação, a fidelidade canina até, dos “súbditos”. Aliás, a teimosia em chamar a alguém “súbdito” é explicação cabal da bafienta monarquia. É a negação do conceito de cidadania que tem evoluído com a emancipação das pessoas, com a consciência dos direitos individuais. Eis como a monarquia, tão dependente de símbolos que divinizam reis, fossem eles feitos de uma massa diferente da pessoa anónima, é um reduto da ancestralidade que destoa do tempo em que vivemos.

A inquietação revolve-se no seu espartilho, ao ver como o episódio tem sido gerido pelos diligentes defensores da monarquia espanhola. Actuam como os zeladores de coisa alheia, que querem mostrar serviço e são mais papistas que o papa. Tendo acompanhado o episódio, ainda não li que suas excelências os membros da casa real tenham reagido. Um silêncio comprometedor, ou um silêncio revelador? Acaso se sentissem ofendidos por verem as suas frondosas faces retratadas alvo da cremação furiosa em público, não viriam mostrar o incómodo? Quem por eles fala são as pitonisas indefectíveis que sentem perder as rédeas do tempo, acossadas pela marcha inexorável que mergulha a monarquia num lugar esconso onde só pertencem as coisas anacrónicas.

Há reacções que são tiros no pé. É o caso. Se em vez de gritarem a sua ofensa desvalorizassem os actos dos radicais, os patronos da monarquia não se expunham – a si e ao regime tão querido – ao ridículo. Ao perderem a face, caem na esparrela que os radicais montaram através das provocações. E mostram, também, que não diferem na intolerância de quem desejam ardentemente perseguir. No fim de contas, as exacerbadas reacções de defesa dos reis e descendência provam a negação da “nobreza” que vegeta nos umbrais do regime. Pois a perseguição canina aos radicais é a antítese da suposta “nobreza” de carácter que os “nobres” das casas reais se dizem penhores máximos. Não é de nobreza que se trata: é de um odor nauseabundo, uma monarquia apodrecida.

5.10.07

Santa república


Nem a contradição é sinal de falsidade, nem a falta de contradição é sinal de verdade”, Blaise Pascal

Pena: que as comemorações da república se tenham banalizado, perdido até o fulgor que a solenidade do momento carecia. A tão importante república não é valorizada como merece. As pessoas nem sequer se lembram que neste dia, há quase um século, a anacrónica monarquia foi deposta, um singular acto triunfante do povo, emancipado das garras tentaculares de uma nobreza anquilosada. Talvez por já ter passado quase um século, perdeu-se o hábito de festejar condignamente a república. As décadas que passaram diluíram o lustro. Nem só o tempo: o desinteresse das pessoas, tão habituadas à república, ou tão cansadas dela, que só querem aproveitar o feriado para comprazimento pessoal. A cidadania cede o passo perante o hedonismo individual.

É pena: ver o lastimável cortejo de republicanos saudosistas que desfilam nas patéticas celebrações oficiais. Uma brigada do reumático que, ano após ano, vai minguando – que a velhice ceifa vidas de republicanos dos quatro costados, que ficam na parada, militantes e devotos, sagrando a já velha república, exorcizando fantasmas dos reis e corte adjacente que ainda assaltam os seus pesadelos. Imagino-os, feridos no orgulho republicano ao verem os políticos de agora, enfatuados, no dever de proferirem oratória a preceito, de como aparecem contrariados – que em vez das cerimónias oficiais já podiam estar em fim-de-semana alargado com a família e, em vez disso, regurgitam as banalidades usuais para meia dúzia de almas penadas que insistem em comemorar um feriado a que a larga maioria nem sequer recorda o significado.

A memória tão volátil desencontra-se com os seus deveres, derrotada pelo tempo voraz que pesa, derrotada pela fatuidade dos interesses mundanos. Alguns insistem em educar para a cidadania; e, no entanto, é só um pregar no deserto, porque as pessoas demitem-se dos deveres de cidadania e deixam falar mais alto interesses individuais. É a era do egoísmo que não se compadece com festejos colectivos. O habitual cortejo de lamentações, também elas frívolas. Os sacerdotes do republicanismo à maneira antiga hão-de sentir o orgulho republicano ferido ao notarem o desinteresse das gentes e o ar contrariado com que os políticos com direito a coroa do poder participam nas celebrações.

O futuro não é risonho para os sacerdotes do republicanismo: eles envelhecem, vão partindo à medida que os corpos cansados não resistem à doença. Com os funerais dos sacerdotes do republicanismo, é a república que vai perdendo significado. Vão perdendo força as vozes que se deitam em oratórias inflamadas a sacralizar a valorosa república, como se em todos os cinco de Outubro voltassem a esbracejar os fantasmas da monarquia deposta. A gritaria vem cedendo o lugar a vozes que se ouvem ao longe, abafadas pela vozearia dos que mergulham em inconsequentes assuntos que revolvem banalidades. À medida que ficam menos audíveis as vozes que tecem loas à república, perde-se a sua santidade, tomada pela banalização.

A república adoeceu. Os senadores que ainda têm força para a sacralizar são personagens que povoam a riqueza, provando o contrário da frugalidade material dos genuínos princípios republicanos. Haverá muita diferença entre a nobreza de fartos privilégios que se banqueteava na corte do rei e os senadores que subiram na escada dos negócios por terem sido triunfantes personagens no terreno da república, amesendados também num lauto banquete que distribui ocultos proventos que se traduzem em abastança material? É a corruptela da república, ou de como também a república se viciou na sedução das regalias que o dinheiro e o tráfico de influências autorizam.

Casta por casta, sobram poucas diferenças entre monarquia e república. É que até há sucessões dinásticas nas repúblicas, ainda que elas não estejam garantidas por força de decreto. A república perdeu a face e hoje não é coisa que se diferencie muito de uma monarquia. Numa como noutra, castas vingaram e trataram da vidinha. O povo, sempre um adereço folclórico, é convidado ao consentimento. No caso da república, ainda com o fantasma da monarquia brandido todos os cinco de Outubro por uns ingénuos que aclamam a pureza da república de antanho, com o beneplácito de outros nada ingénuos que fizeram da república o seu banquete.

A república leva quase um século de vida. Quanto mais santificada, mais adoece e se entrega nos braços da podridão.

4.10.07

Professores e animais


Um bom mestre tem sempre esta preocupação: ensinar o aluno a desenvencilhar-se sozinho”, E. M. Forster.

Coincide hoje a comemoração de dois dias mundiais: do professor e do animal. Soará estranha a coincidência. Ou até insultuosa, se houver mestres que se achem imbuídos de uma aura especial e rejeitem qualquer comparação com animais, nem que a comparação actue em relação aos destinatários da sua arte. Neste mundo impregnado de dias mundiais de tudo e mais alguma coisa, o significado da festividade dilui-se na mundana natureza da efeméride. Como uma das celebrações de hoje coincide com a minha profissão e a outra com um imenso gosto pessoal, não passaram em branco.

Os professores são muito importantes – costumamos interiorizar, sobretudo aqueles habituados a actuar perante uma plateia de alunos em que é variável o interesse e a atenção pelos ensinamentos debitados. Paradoxalmente, a sociedade deixou de consagrar a profissão como o fez outrora. E digo que é um paradoxo porque um dos lugares-comuns da modernidade em que vivemos é a elevada importância do ensino. Uma sociedade desqualificada é meio caminho andado para um mergulho suicida no atraso. Ora não há esmero na qualificação das pessoas se elas não passarem pelo crivo do bom ensino. Faria sentido privilegiar a função do professor, afinal formador das gentes que hão-de, nas empresas e na administração pública, fazer mover a carruagem.

Sem resvalar para corporativismos espúrios, nem menos adoptar linguajar sindicalista, acho que os professores não são credores do respeito que merecem. São mal pagos. São olhados de soslaio por clarividentes personagens com traumas passados às mãos de maus professores – que os há. Sobre eles pesa o estigma da lassidão do que ensinam, de serem personagens encerradas numa inatingível torre de marfim onde o mundo é visto por uma lente desfocada. Sobre eles, ainda a ideia preconcebida de que trabalham pouco. Onde existe flexibilidade de horários confunde-se gente preguiçosa, que trabalha poucas horas por dia. Quase o rótulo de parasitas sociais. O desrespeito como corolário. E quando assim é, um colectivo que cospe no prato onde lhe dão a comer: desprestigiar os professores é rejeitar todo um capital que investe no devir de todos nós. A menos que se acredite na solvência dos self-made-man, aqueles que têm a sorte de vingar com opções em cima do joelho que, por um mero acaso, frutificam.

Há mais um acto que desvaloriza o professor: um ensino universitário invadido pelo espírito de Bolonha. Ensinar é agora diferente. Grande parte do ónus foi transferida do professor para o aluno. Um dos lugares-comuns do processo de Bolonha é que ao professor cabe ensinar a aprender, já não tanto ensinar conteúdos. É aí que a citação de E. M. Forster faz sentido: cada vez mais ao professor compete ensinar ao aluno a saber desenvencilhar-se. Nada de novo na idiossincrasia nacional. Sempre fomos conhecidos pela arte do desenrascanço, navegando por estima, sem traçar rota nem prever acidentes de percurso. Se calhar, Bolonha é trazer para o ensino um ingrediente vulgarizado por cá. Para mim, é o abastardamento do ensino, infectado por uma má característica da sociedade. Quando deviam ser os professores a mudar hábitos, Bolonha importa para o ensino os maus hábitos da sociedade.

Há ponte possível entre professores e animais? Acabo de ouvir num noticiário, a propósito do dia mundial do animal, que o abandono de animais domésticos subiu cerca de 20% em relação ao ano passado. E não sei se o que somos convidados a fazer, nesta adaptação ao método bolonhês de ensino universitário, não encontra paralelo no abandono a que os infelizes animais de companhia são votados. Os resultados de Bolonha hão-de ser escrutinados só daqui a alguns anos, quando a fornada de pessoas habilitadas por este método for representativa para retirar conclusões. Então se verá se os alunos não foram abandonados à sua sorte. E se a selva em que entram depois de terem o ansiado canudo na mão não é ainda mais inexpugnável e traiçoeira do que já o era antes.

3.10.07

Na vanguarda social, estou eu


Sem aviso, levanta-se a cortina e o palco mostra a sua nudez. À minha frente, espraia-se um cortejo feérico com um funambular dragão que vomita chamas que me encandeiam. As chamas deixam para trás um rasto, na forma de uma palavra a pesar sobre a cabeça, ininterrupta: “incoerente – incoerente – incoerente”. Atónito pela incensada palavra que teima em vaguear sobre mim, interrogo-me das razões de sentença tão lapidar. É tão vitorioso o sentimento ao denunciar incoerências alheias, que a perplexidade toma conta de tudo quando a acusação esbarra no fautor, atingindo quem tanto se gaba de arruinar vaidades alheias pela detecção de incoerentes ideias ou palavras.

Pergunto aos algozes pela fonte da incoerência de que venho acusado. Da côncava abóbada do teatro desce um holograma. Retrata notícia publicada em jornal:

De acordo com os dados do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, citados pelo “Diário de Notícias”, só 438 pais beneficiaram de subsídio de paternidade em 2006. Se atendermos a que nascem por ano cerca de 100 mil bebés, o subsídio de paternidade não abrange mais de 0,5% dos pais.

O subsídio de paternidade é património genético do assistencialismo moderno, que vem repensar o Estado social europeu adicionando-lhe novas componentes que tanto agradam ao império do politicamente correcto. Não é só sobre o subsídio de paternidade que a notícia devia reflectir. Devia indagar sobre a percentagem de progenitores que beneficiaram da licença parental, duas semanas de paragem na actividade profissional para acompanhar os primeiros dias de vida do bebé, ajudando na dolorosa recuperação do parto que espera a mãe. Para já ainda é um direito garantido aos pais, dependente de requerimento para que possa ser usufruído. Que ninguém se surpreenda que um dia destes passe a ser coutada do obrigatório, com os pais forçados a ficarem em casa durante as duas semanas que se seguirem ao parto.

Não é só pela imposição que me desagrada este activismo social. Ele traz a compensação dos votos, tanta a gente seduzida pelo vanguardismo social e pelo acréscimo de bem-estar do agregado e de cada progenitor. Mas, ao ser impositivo, é cerceador do livre arbítrio de quem concebeu o nascituro. Entramos, de supetão, no paternalismo que prolonga a adolescência dos cidadãos para a sua idade adulta. Um novo paternalismo: já não não filial, um paternalismo que, querem-nos convencer, é cimento da cidadania.

Este activismo social, que se desmultiplica em direitos, subsídios, assistencialismo que perpetua a dependência de quem generosamente presta tantos apoios, acho-o nauseabundo. Educados para conviver com a tutela garantística do granítico Estado, nem damos conta de como a pulverização do Estado assistencial é uma ilusão, um furto insidioso ao livre arbítrio individual, uma sementeira de votos que fideliza eleitorado e eterniza monopólios de poder. De cada vez que estendemos a mão às migalhas, mas generosas, aspergidas pelos burocratas magnânimos, hipotecamos a emancipação que uma cidadania independente, sem amarras à paternal âncora do Estado, supõe.

Estes fragmentos servem para desnudar a incoerência que veio bater à minha porta, quase três anos depois de ter sido pai. Diz a notícia que o número de progenitores que solicita o subsídio de paternidade “(...) está a crescer de ano para ano, embora de forma muito lenta. Em 2004 contavam-se apenas 391 casos, que passaram para 413 no ano seguinte, chegando aos 438 em 2006.” Assim tomei conhecimento que em 2004 estive entre a escassa minoria dos que se saciaram no subsídio prometido. Fui eu e mais trezentos e noventa – uma ínfima percentagem da totalidade dos nascimentos, nem meio por cento. Não que só agora tivesse descoberto a incoerência ideológica que me apanhou pelo caminho, pois entre 2004 e o dia de hoje não mudei de ideias quanto ao estafado assistencialismo. Como é de bom-tom, há explicações para o tiro no pé: primeiro, a emoção do acontecimento aconselhava duas semanas de pausa no trabalho (e não, não é preguiça, nem ausente disposição para o trabalho). Segundo, a graça de acompanhar todos os segundos do início da vida da minha filha. Terceiro, já que pago tantos impostos, por uma vez me fosse trazida contrapartida. O materialismo falou mais alto que as convicções ideológicas. Desbaratando-as?

Para escapar do desconforto da incoerência – hoje posso ser acusado de ser mais um a dizer “olha para o que eu digo, não para o que eu faço” – a grata percepção que estou entre um escol, uma elite informada que tem conhecimento da existência destes apoios aos pais que o acabaram de ser.