Há peças de literatura sobre hotéis, de como os escritores se enamoram por hotéis e deles fazem a sua residência. Descrevem hotéis de cinco estrelas ou menos, mergulhados no luxo e em pequenos detalhes de classe à mistura com a paisagem bucólica, arquitectura de excelência, ou apenas o charme discreto que leva os escritores ao enamoramento vertido nas palavras que imortalizaram esses hotéis.
Nessas páginas, dizem que gostam de saltar de hotel em hotel, o travo adocicado da ausente habitação fixa. Serão nómadas guiados pelo pouso temporário. Um hotel é isso mesmo: tece a ponte entre uma etapa acabada de preencher e a do porvir. Instalam-se uns poucos dias, por vezes semanas a fio. Mas acabam por embalar os haveres em demanda de outras paragens, outro hotel escolhido a dedo, que há-de trazer para as páginas da escrita outras sensações, outros detalhes da paisagem e da arquitectura, outras pessoas com quem hão-de conversar dando motivo a reflexões, banais ou das que vão até às profundezas do pensamento. Um outro que é só a repetição em lugares diferentes.
Para os escritores que alguma vez legaram palavras elogiosas aos hotéis por onde foram passando, os hotéis resguardados na memória têm vida. São lugares onde os escritores deixaram vestígios de emoção. Mais tarde, se o escritor atingiu a ribalta e germinar um séquito, os hotéis do seu roteiro ganham personalidade própria que ecoa nas palavras escritas, entoando os predicados do hotel. Estes hotéis entram num roteiro cultural, com os admiradores do escritor demorando-se em cada sala que ele retratou, no restaurante, no alpendre, no bar onde vogam as cortinas de fumo acompanhadas pelo som do piano, revivendo os dias e noites que foram o leito onde se prepararam as palavras glorificadas em êxitos editoriais.
Não consigo acompanhar a excitação com hotéis. Vejo-os como portos que acolhem navios: a paragem que se impõe para o recolhimento nocturno, pois afinal temos que dormir umas horas. Não digo que desdenhe o bem-estar de um hotel. Quem se não importa de deitar numa espelunca se a pode trocar por um hotel como comodidades? Só que não consigo, como alguns escritores celebrizaram, “sentir-me em casa” quando me acomodo num hotel. Tenha ele quantas estrelas tiver. No hotel não há nada património do hóspede. Apenas um lugar indiferenciado pernoitado por todos os hóspedes que estiveram alojados naquele quarto. Um mar de estranhos passaram pelo preciso quarto onde estamos alojados. Não é de suspeições de higiene que se trata, pois as regras de higienização actuam. É só a estranheza de saber que na noite anterior, nas noites anteriores, estranhos fizeram seu aquele que é o meu leito temporário.
Nunca passei temporadas em hotel nenhum. Nisso divirjo dos escritores que afamaram hotéis. Falta-me esse traço que poderia trazer alguma familiaridade, diria mesmo alguma intimidade, entre um hóspede e o lugar que o aloja na prolongada estadia. Todavia, as estadias demoradas transformam um hóspede em residente habitual. E, se assim for, os textos encomiásticos de hotéis perdem o seu fulgor, porque os hotéis se reconstituem em lugares onde os hóspedes deixam de o ser e passam à condição de residentes habituais. Num exílio necessário do domicílio, porventura porque o sedentarismo do lugar acomoda uma doentia claustrofobia.
Só que, então, os hotéis passam a ser refúgios. É mudar de residência por outra residência, com a arrumação dos pertences, a sedimentação de laços, o acostumar ao lugar, a identificação com a paisagem. O estreitamento de outros rituais, como a cama onde se deita, a sala do pequeno-almoço, o bar, a sala de leitura, a recepção onde vai crescendo uma intimidade familiar entre o hóspede e o hotel. Que se transforma em sua casa. É só um simulacro dos rituais que entontecem, cansam pela repetição com que se sucedem. Mas há novos rituais – rituais à mesma. Um hotel onde as pessoas se arrastam em prolongada estadia é a casa de que se exilaram. Pela identificação que se cimenta. Haverá fuga de si mesmo quando a acomodação demorada no hotel grita bem alto.
Como digo, nunca experimentei a sensação de remover a existência para um distante hotel onde seria pessoa diferente. Por enquanto, os hotéis continuam a pertencer aos lugares de passagem de seguida esquecidos. Neles, o espartilho da indiferença.
(Em Pamplona, Espanha)
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