26.10.07

As lições inúteis da História


Em Espanha, decidiu o governo passar uma esponja pela História desconfortável. Nomes que fizeram parte da ditadura franquista e que ainda perduram na toponímia vão ser varridos do mapa. Manda a lei feita por socialistas. Como se o passado franquista não tivesse acontecido. Era bom que a História da humanidade não abrigasse o património de ditadores ominosos, ou de loucos que cercearam o viver de tantos. Por mais que sejam dolorosas as feridas, por mais que elas permaneçam abertas, refazer o tempo passado é uma indignidade maior.

O pior é que nada se aprende da História – de outros episódios de revisitação do passado, com acontecimentos reescritos a condizer com a consciência aquietada, ou apenas para acalmar espíritos que ainda vivam atormentados pelas atrocidades que um regime despótico, mas já deposto, cometeu. Os exemplos do estalinismo de nada servem. E, contudo, não estão assim tão distantes de nós no tempo. Porventura será outra coisa: apenas ignorância, uma tremenda manifestação de desconhecimento dos algozes da História. Não sei o que será pior: aprender a conviver com o nome de um sequaz de uma ditadura ostentado na rua onde vivemos, ou saber que almas piedosas, mas docemente tortuosas, se desfizeram desse passado em nome de um presente imaculado. Só que manchado pela mentira, porque não há como apagar do mapa o que já aconteceu.

A ideia de que o colectivo se pode desfazer da sua história incómoda transporta a mensagem ilusória de que cada pessoa tem condições para se libertar dos fantasmas que atormentam. Convencendo-se que o percurso de vida foi um rosário de momentos idílicos, já que os momentos amargos, as horas de tristeza, as dores pungentes provocadas pela perda de um ente querido, jamais teriam marcado encontro com o calendário da vida. Seriam só o pasto para um difuso pesadelo, a confirmação da realidade que não passou de um momento onírico.

Tenho um problema com quem nos convence que há um lânguido oceano de rosas no que deparamos pela frente, todos os dias – os passados, já refeitos pela cirurgia da História, e os futuros, por acomodação dos espíritos. Temo esta gente: são artífices de uma anestesia colectiva, uma mordaça invisível com o dom de calar o descontentamento dos que não se revêem na linha oficial. A condução de quem governa obedece a imperativos de imagem, pois é cada vez mais a projecção de uma imagem, tantas vezes ilusória e sem conteúdo, que conta na hora de arregimentar fidelidades que se convertem em votos. Contudo, esta é mais uma achega para a distorção da pedagogia de quem manda. Que ensina a não olhar aos meios para chegar aos fins, e oferece padrões alterados do que aprendemos ser a ética.

(Ainda que seja terreno que me custa pisar: há aqui o tal moralismo que condeno e que me traz desconforto quando noto que para lá resvalei. Além de que a ética é subjectiva, não formatável por padrões de um sentido só.)

Parece sanha o que cerca por todos os lados – afinal um produto da prestimosa Internacional Socialista: penhores da consciência colectiva, imprimem o rumo que, de dentro das suas cabeças, se há-de contagiar à consciência de cada indivíduo. Sob pena das ovelhas tresmalhadas serem apontadas a dedo, votadas ao ostracismo, acusadas de complacência com o contrário do que os pais da boa moral dizem combater. É nestas alturas que emerge um espírito de contradição. Não é só pelo imperativo de aborrecer, de romper consensos que nos mergulham numa placidez doentia. É também por homenagem a princípios inamovíveis. Tão inamovíveis como o tempo arquivado nos anais da História, que se pensava fazer parte do património inerte, porque pertence ao domínio do já acontecido. Estes sacerdotes da pós-modernidade contemplativa, de um artificial maneirismo politicamente correcto, são prodigiosos espíritos convencidos que podem mudar a História por força de lei e porque a sua iluminada vontade o quer. Por mais que se esforcem por serem engenheiros sociais, às vezes descuidam-se no afã e perdem-se nos meandros do ilusionismo, sem darem conta.

O passado franquista da Espanha é deplorável? É. Mas aconteceu. E há nomes nas ruas e praças das cidades e vilas e aldeias que já são património desses locais, entranhados nos hábitos das populações. É insidioso acreditar que a História incómoda de uma país se pode branquear, passando lixívia nos nomes dos fautores desse passado ignóbil. Como é insidioso o nome da tal lei: a lei da “boa memória”. Desconhecia que se podia fazer juízos de valor acerca da memória.

Perante isto, já nem sei de quem ter medo. Os que vão ser varridos da toponímia estão mortos, já não fazem mal a ninguém. O mesmo não se pode certificar dos que ainda por cá andam, tão apressados em fazer revisitações estalinistas do passado.

(Em Madrid)

Sem comentários: