31.10.07

A guilhotina do tempo


Um relógio – paradoxal objecto. Tanto é obra de arte, o pináculo da estética, a admirável peça que carece meticuloso empenho dos artífices que nunca têm a vista cansada de tratarem como filhos os relógios que criam. Como é carrasco das ilusões, o ditirâmbico porteiro das oportunidades que se lamentam pelo desperdício, ou pelos planos que não escapam do papel, dos projectos cerceados porque a foice da morte tombou, pertinaz.

Há nos relógios uma dança descompassada. A voragem dos segundos que se atropelam na sua velocidade incessante, acamando os minutos, as horas, dias, meses e anos que fazem uma vida. São apenas os juízes do valor que damos ao tempo que nos foi oferecido. Uns juízes especiais, desapossados de poder de julgamento sobre as acções e omissões de quem passa pelo crivo do tempo. E somos todos, mesmo os que se convenceram que são alienadas personagens do mundo que há. Não são os juízes do tempo nossos carrascos: somos nós, com a dom de dar utilidade ao sempre escasso tempo diante das mãos.

A uma dor não consigo descobrir arte de iludir: os relógios distribuem a claridade que separa a gratificação da amargura, do que não houve mercê de alcançar. Uma prisão angustiante, quando o tempo parece voar, supersónico, sem dar conta que obedece à mesma bitola. Só que às vezes apetece acreditar que há um qualquer arquitecto do tempo que nos engana, ao chegar o periódico acto de calibrar a balança que faz mover os ponteiros do relógio. Umas vezes os minutos escorrem lânguidos, numa exasperante lentidão, quase a sensação do tempo ter sofrido de uma inércia doentia. Se preciso for, logo no dia seguinte desagua uma enxurrada de tarefas e os ponteiros do relógio dir-se-ia que aceleram como se houve temor que o mundo fosse terminar amanhã.

As masmorras que me amordaçam são os relógios que ostentam os ponteiros cadenciados. Queria, por vezes, que eles parassem, por uns instantes que fosse. Há momentos que merecem imortalização, que exigiriam uma suspensão dos ponteiros, o tempo emoldurado para beber tais momentos em toda a sua seiva. Há também o seu contrário. Ocasiões que queria banidas do tempo, como se houvesse um salto que transportasse os ponteiros para uma folha mais adiantada do calendário. É da tirania do tempo que não há mister de me libertar. Pudesse convencer-me que os dias e meses e anos escorrem com a velocidade milimétrica de um relógio atómico e perderia o rasto ao dilema dos relógios que martelam o sossego do espírito, constantemente. É daquelas coisas que me é superior. Seja pelo temor da morte, seja pelo chão viscoso que piso quando há o descuido de espreitar por detrás do ombro, numa revisitação espúria do passado.

Não é o tempo ido que carece de atenção. Esse, já feito, não se repõe. Onde os relógios trazem a sua dilacerante voz é no porvir que o andamento dos ponteiros anuncia para depois. Não é aquele passo de um segundo para outro, em qualquer quadrante do relógio, faça dia ou faça noite. É tentar olhar por cima das ameias do presente e pressentir o impossível – as pontas do novelo que se compõem, ou noutros casos se descompõem, quando a marcha dos ponteiros anuncia a chegada do amanhã por que se espera.

É nesse exercício de paciente espera que tropeço nas armadilhas semeadas pelos relógios endemoninhados. Que se tece a ponte entre passado inerte e o devir, à mostra um tremendo cadafalso para onde é fácil resvalar. Rever paisagens marcantes, tão marcantes que se avivam na memória. E interrogar se algum dia serão revistas, ou se há-de chegar primeiro a despedida fatal. Deter-me diante da colecção de CD e reparar em discos já não ouvidos há longos anos, para logo a seguir permitir a interrogação incómoda: algum dia voltarei a escutar esse CD? No entanto, estou inerte, ali, diante do CD como se ele, na adivinhada improbabilidade de audição, chorasse pelo tempo escasso que impede uma vez, uma vez só que fosse, inundar a sala com os seus sons. Ou o lamento por mim, à míngua de ponteiros do relógio que permitam a revisitação aos sons já remotos.

Eis a sublime guilhotina do tempo, irremediável, com uma envenenada candura. Quantas são as coisas feitas, ou as palavras ditas, manifestações de arte testemunhadas, lugares visitados, pessoas encontradas – quantas são as vezes em que isso acontece pela última vez, mesmo que o percurso a palmilhar até ao abismo seja demorado? E que interessa que volte a existir repetição tardia, ou não, de tudo?

Há retóricas que pertencem ao património genético da personalidade. Nem que seja um profundo hiato a separar a retórica da sua consagração. Faço do “carpe diem” lema. Não demoro, todos os dias, a cultivar a negação do lema, afinal fogo fátuo que preenche o cardápio das boas intenções. Preso ao cardume do tempo incerto, às voltas com as fendas abertas entre o tempo ido e o que está para assentar, consigo tudo menos viver cada dia que passa, um de cada vez, sem repousar na almofada com os sinos eufóricos que troam as incógnitas que só a sentença derradeira permite aclarar. Até lá, fico sentado diante dos CD, quase sempre sem vontade para regressar a discos que não voltaram a tocar desde há largos anos.

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