8.10.07

Espanha, a monarquia mefítica


Para dar sequência ao texto de sexta-feira. Então desdenhando da república, da república aqui instalada. Para reequilibrar e afastar possíveis conotações com o lado contrário, hoje renega-se a monarquia. Pedindo de empréstimo aos espanhóis o exemplo pestilento de monarquia. Vai ardendo a polémica, porque alguns juízes zelosos decidiram encetar perseguição judicial a radicais que, em jeito de provocação, queimaram em público fotografias de suas excelências o rei e descendência.

Convém fazer um ponto de ordem: o acto de queimar o que quer que seja – fotografias de personas non gratas, bandeiras de países diabolizados, livros, revistas ou jornais que satirizam ídolos com pés de barro – é uma grotesca exibição que cultiva intolerância com uns laivos de violência. É um daqueles actos que qualifica quem os comete. Não sou da opinião que haja lugar a repressão – policial ou dos juízes – sobre quem exerça a sua liberdade de opinião através de um acto impregnado de violência como o é a queima do que quer que seja. Desde que a segurança dos outros e os seus haveres não sejam postos em causa, trata-se de permitir que a liberdade de expressão fale através das suas inúmeras manifestações.

Se há radicais que se sentem incomodados com a anacrónica monarquia espanhola e decidem expressá-lo queimando fotografias de membros da casa real, é um direito que lhes assiste. A pífia monarquia que se debate com perseguições do aparelho judicial a quem o faça, dá uma triste imagem de si mesma. Uma imagem que não é muito diferente dos radicais que quer combater. Com uma diferença de vulto: é que os radicais servem-se das armas que estão à sua disposição por não estarem na posse do aparelho do poder. Já os baluartes da monarquia contestada são os detentores do poder, pegam nele para perseguir os que ousam provocar beliscando a imagem deificada do rei e da descendência que há-de herdar a coroa. Coincidem na intolerância. Os radicais, exibindo os maus fígados quando incensam fotografias de sua excelência o rei (sem lugar a genuflexão). Os guardiães da monarquia, porque criminalizam a afronta que consideram a queima de fotografias, decerto porque a casa real é um símbolo da monarquia. Por ser inadmissível beliscar os símbolos, ou os alicerces da divinizada monarquia ficam hipotecados, exerce-se a repressão que não casa com o Estado de direito.

Causa-me confusão a retórica dos símbolos, de como são intangíveis, inatacáveis. Pior ainda quando pessoas, tão de carne e osso como os “súbditos” que lhes devem sepulcral vassalagem, são entronizadas no sagrado lugar de símbolos. É que uma pessoa arvorada em símbolo perde qualidades humanas. A responsabilidade que repousa sobre os seus ombros é de uma violência inaudita, porque arcam com o peso sobre-humano de serem o farol que inspira a dedicação, a fidelidade canina até, dos “súbditos”. Aliás, a teimosia em chamar a alguém “súbdito” é explicação cabal da bafienta monarquia. É a negação do conceito de cidadania que tem evoluído com a emancipação das pessoas, com a consciência dos direitos individuais. Eis como a monarquia, tão dependente de símbolos que divinizam reis, fossem eles feitos de uma massa diferente da pessoa anónima, é um reduto da ancestralidade que destoa do tempo em que vivemos.

A inquietação revolve-se no seu espartilho, ao ver como o episódio tem sido gerido pelos diligentes defensores da monarquia espanhola. Actuam como os zeladores de coisa alheia, que querem mostrar serviço e são mais papistas que o papa. Tendo acompanhado o episódio, ainda não li que suas excelências os membros da casa real tenham reagido. Um silêncio comprometedor, ou um silêncio revelador? Acaso se sentissem ofendidos por verem as suas frondosas faces retratadas alvo da cremação furiosa em público, não viriam mostrar o incómodo? Quem por eles fala são as pitonisas indefectíveis que sentem perder as rédeas do tempo, acossadas pela marcha inexorável que mergulha a monarquia num lugar esconso onde só pertencem as coisas anacrónicas.

Há reacções que são tiros no pé. É o caso. Se em vez de gritarem a sua ofensa desvalorizassem os actos dos radicais, os patronos da monarquia não se expunham – a si e ao regime tão querido – ao ridículo. Ao perderem a face, caem na esparrela que os radicais montaram através das provocações. E mostram, também, que não diferem na intolerância de quem desejam ardentemente perseguir. No fim de contas, as exacerbadas reacções de defesa dos reis e descendência provam a negação da “nobreza” que vegeta nos umbrais do regime. Pois a perseguição canina aos radicais é a antítese da suposta “nobreza” de carácter que os “nobres” das casas reais se dizem penhores máximos. Não é de nobreza que se trata: é de um odor nauseabundo, uma monarquia apodrecida.

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