16.10.07

Um dogma: nos filhos há todo um lastro que vem dos pais


Há duas maneiras de dizer isto: faz hoje três anos que nasceu a minha filha; ou: faz hoje três anos que fui pai. Sei que as duas coisas são causa e efeito. Que tanto faz formulá-las de uma forma ou da outra. No entanto, a escolha de uma das fórmulas não é inocente. Suspeito que muitos progenitores que optam pela primeira no seu íntimo pensam na segunda. É natural que o façam. A inauguração da paternidade é um marco na vida, uma página dobrada, um dia que fica retratado para a eternidade, com as memórias bem frescas que perduram anos a fio.

Diz-se que um filho é um acto de generosidade. Uma vida legada, muito de nós – os pais – posto na vida gerada. E depois vem o relambório dos manuais da puericultura: todo o amor consagrado aos filhos, quase como se os pais fossem levados a um desprendimento da vida própria, dedicados agora a viver apenas para e em função dos filhos. Os filhos seriam pequenos ditadores a marcar o passo dos pais. Uma ditadura feliz, porque pai nenhum questiona o amor depositado no filho. Contudo, há uma desconformidade nos usos da paternidade. É que estamos habituados a ver nos filhos o nosso prolongamento. São clones imperfeitos das nossas virtudes (e só nos agrestes momentos é que vem o reconhecimento, por íntimo que seja, que há neles semeados alguns dos defeitos que em nós habitam). As façanhas dos filhos são glorificadas, como se no âmago houvesse ali auto-comprazimento dos progenitores.

Dizer-se que um filho é acto maior de generosidade choca com a ideia – escondida – de que um filho é um acto sublime de egoísmo. Quando se confunde o amor devido ao filho com a ideia de que ele é o nosso prolongamento, destila-se a exaltação de um narcisismo reprimido (ou não). Como é enternecedor ir às reuniões de pais do infantário e ver o desfile de rivalidades inconsequentes dos paizinhos que não conseguem calar as façanhas dos petizes, sempre um pouco mais além que a façanha acabada de descrever pelo paizinho que terminou de orar. É um concurso que mostra criancinhas com dotes fantásticos porque – adivinha-se – foram gerados por quem foram.

Aceita-se que um filho tem a genética dos pais, sob pena de negação da ciência. E que no crescimento dos filhos há muito dos pais que vai sendo incorporado – e dos avós, de outros familiares, dos amigos, dos professores. O que se esquece é que uma criança é um individuo, ela também uma ilha com o seu ADN, que mesmo sendo uma mistura dos pais é nessa mistura uma individualidade própria. Reconforta os pais sagrarem os filhos porque são o produto do seu amor – ou de um arrebatamento da paixão, ou de um acidente de percurso, o que quer que seja. A contradição é que tão depressa o acto supremo de amor, num desprendimento que se convencionou elevar ao altar do altruísmo, assenta na poeira do egoísmo imperceptível. Sim, há num filho essência dos pais. Mas um filho é uma ilha que desagua na sua individualidade. Porque temos que encontrar em tudo o que um filho é, traços que vêm do pai ou da mãe? Quantas vezes o narcisismo reprimido dos pais se desnuda na exaltação do filho, denunciando o ensimesmar dos pais?

Agora que passam três anos e olho para trás, o que celebro são todos os passos que cimentam o crescimento diário da minha filha. Recordar os sedimentos desse processo – o gatinhar, os primeiros passos, o esboço de linguagem que evoluiu na articulação das primeiras palavras, o afecto, o simples olhar enquanto dorme, as brincadeiras que me permitem descer à infantilidade da idade dela, até as reprimendas necessárias depois da impertinência ou da asneira mais surpreendente (ontem: um telemóvel assado no microondas...).

Quando tudo isto assoma à superfície não consigo reprimir um arrepio da pele. Quero que seja sentido como um acto de desprendimento, olhar para ela como alguém que vai dando os seus passos num crescimento que tem muito de auto-aprendizagem. Na recusa de ver na filha um espelho de quem a gerou, porque aí fala mais alto a recusa maior de impregnar a filha com o egoísmo típico dos progenitores.

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