9.10.07

O intocável


Um dia o impensável haveria de acontecer: eu, solidário com comunistas! Há um culpado na bizarria: o primeiro-ministro, que insiste na sua aura de messiânica personagem que nasceu para nos salvar de um destino malfadado, o inversor de um fado tristonho que nos traz atados à ausente auto-estima. Um excelso governante dotado de capacidades extra-sensoriais, quase um prestidigitador embrulhado num papel cintilante, feixe esperançoso para extrair as lusas terras do cadafalso onde pareciam estar irremediavelmente enterradas.

Personagem com tamanhos predicados não merece contestação. Só encómios, e muitos, todos os dias os enaltecimentos a jorrarem com abundância, nunca as vénias a serem excessivas. É compreensível que o senhor primeiro-ministro se incomode com a ingratidão dos dissidentes das suas políticas benfazejas. Onde o respeitinho devia nortear o comportamento de todo e qualquer cidadão que se preze, temos a flagrante injustiça das manifestações orquestradas para assobiar o senhor primeiro-ministro. Os malfeitores deviam ser exilados, por não merecerem ser aspergidos pela governação salvífica. São malsãos, estes comunistas que andam de norte a sul a perturbar as solenes cerimónias de inauguração disto e daquilo, as entregas de computadores aos petizes do décimo ano, até as reuniões partidárias nas quais o senhor primeiro-ministro despe a casaca de governante e veste a de líder de facção política. É que às vezes a democracia é um obstáculo, quando os limites da decência são ultrapassados.

Já não é a primeira vez que o timoneiro da nação aparece irritado diante das câmaras, protestando contra quem contra ele protesta. Diz que está cansado da perseguição dos comunistas, que estragam os momentos de consagração pública encenados com uma minúcia milimétrica. Argumenta que uma coisa é protestar, outra é ser insultado. E que “o país” está cansado da sanha persecutória dos comunistas, sempre a mesma estratégia de guerrilha por que já passaram outros primeiros-ministros. Questão prévia: se me é permitido também exprimir algum cansaço por alguma coisa, é por esta mania dos políticos se fazerem passar por porta-vozes do “país”, como se “o país” fosse uma massa homogénea e todos pensássemos da mesma forma – e, por coincidência, para o mesmo lado de onde sopra o pensamento do primeiro-ministro. Depois, que se saiba, quando se é assobiado isso não é insultuoso. Ser insultado é apanhar com palavras feias, que arremetem contra a honra do ofendido. Os pregões ensaiados pela turba comunista não resvalam para a ofensa pessoal. Podem incomodar, sobretudo se não prestarem homenagem à personagem assobiada, mas ofensivos não são.

Já não é a primeira vez que o timoneiro da nação perde aquele sorriso gelatinoso, pontuado pela pesporrência de quem fala com a convicção da sua predestinada aura, e protesta contra manifestantes que protestam contra ele. Vem ao de cima a sua verdadeira têmpera: a incapacidade para lidar com a crítica, o acantonamento dos dissidentes, logo remetidos a uma condição infra-secundária, desvalorizados, ostracizados. Tudo dito com uma irritante irritação que sublinha a ausente cultura democrática do senhor primeiro-ministro. Quem lida mal com a opinião contrária, ainda por cima ocupando o cargo que ocupa, é merecedor da maior desconfiança. Anteontem, o cúmulo da desfaçatez: instruções dadas para um grupo de sindicalistas serem calados e afastados do perímetro onde o senhor primeiro-ministro iria abrilhantar uma cerimónia de inauguração de uma fábrica qualquer perto de Montemor-o-Velho. Primeiro, a polícia retirou as faixas que exibiam o protesto dos sindicalistas. Depois foram afastados para local onde os ouvidos do senhor primeiro-ministro não fossem incomodados com palavras de protesto e as vaias.

Para piorar o diagnóstico, de cada vez que o timoneiro escorrega para a irritação contra os que discordam dele é um tiro no próprio pé. Pela parte que me toca, que não consigo esconder uma embirração cada vez maior com a personagem, isso agrada-me. Ao estalar o verniz, fica à mostra o que a figura verdadeiramente é. Há quem diga que a sua imagem é cuidadosamente tratada, que não há um único passo que não tenha sido estudado ao milímetro. Discordo da análise. Se assim fosse, o senhor primeiro-ministro dava a cara perante os manifestantes, ia falar com eles, usava a sua enorme capacidade argumentativa (pelo menos é o que vai embelezando as hagiografias que dele fazem) e dobrava o cabo das tormentas por cima. Em vez disso, esconde-se e manda calar os manifestantes. Não é lição de cultura democrática. E como se um tiro não bastasse, outro é disparado para o pé que ainda não sangrava: recorda que as tácticas dos comunistas também afligiram os seus antecessores, sem excepção. Só que nenhum deles mandou silenciar manifestações, nenhum deles exibiu uma irritação de quem não suporta dissidências que ponham em causa a aura de que se julga imbuído.

Já tinha há muito esta percepção: o homem é um embuste. Com a passagem do tempo, reforço o diagnóstico. E não lhe perdoo por ser o fautor do que julgava impensável: eu, solidário com comunistas.

2 comentários:

Anónimo disse...

Pois é, a vida ajuda-nos muito, estejamos nós atentos e abertos a outras verdades.

ABS

Anónimo disse...

Totalmente de acordo (mesmo)!
Mandemos o gajo para a rua!
Mas agora a questão: vês alguém melhor na nossa classe política?
Já sei, já sei... isso não te impede de o criticar. Claro que não.
Mas agora deixa-me referir outra "solidariedade" tua com os comunistas: Protestas muito.
Sim, eu sei, estou a ficar uma melga!
Um abraço,
Ponte Vasco da Gama