24.10.07

Casamentos a prazo


Uma deputada alemã descobriu, com uma cientificidade notável, que os casamentos duram em média sete anos. Daí que tenha proposto uma lei que dá a possibilidade de celebrar um contrato de casamento por um prazo de sete anos. Desenganem-se os que já estão a adivinhar a cor política de sua excelência: não é das esquerdas, afinal penhoras de tudo o que se diz “progresso social”. É do partido democrata-cristão.

São estas desafiantes surpresas que tonificam a vida. Não é só pelo inusitado da ideia, para mais com o manto de lei que a cobriria caso tivesse sido aprovada pela maioria dos colegas da deputada. É sobretudo pela filiação ideológica de quem assumiu a paternidade da proposta. Estamos habituados a olhar para políticos democratas-cristãos como uma das exalações bafientas da paisagem partidária. Eis que da Alemanha chega uma arejada deputada que combina o conservadorismo de matriz com a coragem para avançar com uma ideia que deixa a léguas as “causas fracturantes” da esquerda caviar doméstica, tão pródiga nessas causas e no “vanguardismo social”.

É estranho que seja uma deputada democrata-cristã a defender a possibilidade de duas pessoas se casarem por sete anos. E paradoxal, porque os democratas-cristãos, fiéis ao conservadorismo dos valores, defendem a todo o transe a família como célula nuclear. Sagram a família e mobilizam os seus valores em consonância. Não sei se passou alguma ideia tresloucada pela cabeça da deputada, ou se ela foi atingida por uma trovoada que lhe revirou a parte do cérebro onde estão alojadas as tendências ideológicas. Também desconheço se a disciplina partidária, tão usual, falou mais alto na hora de calar a afronta saída da boca da deputada. Mas delicio-me a adivinhar as cabeças ordenadinhas dos conservadores cristãos a contorcerem-se perante a inopinada ousadia da colega de partido.

O que é espantoso é como sobre tudo se legisla. Não é novidade. Dizem que é produto da complexidade da vida, que exige uma actividade frenética dos sacerdotes da legislação. Outros, mais cépticos, apenas desconfiam que a febre das leis é o pretexto para ostentar a autoridade do Estado. Uma forma encapotada de autoritarismo – a forma sofisticada de totalitarismo, em convivência com a democracia. É admirável que uma ficção estatística tenha tanto poder para motivar a proposta de uma lei que fixa o prazo de um casamento. A deputada terá olhado para uma estatística qualquer que mostrava a duração média dos casamentos: sete anos. Bastou para ensaiar a lei. A deputada deve saber tanto de estatística como eu de agricultura: é que as médias escondem muita coisa por entre a penumbra.

Deito-me a imaginar que a ideia da deputada chegaria a lei. Os casamentos seriam como os contratos dos futebolistas, com prazo? Haveria que levar a sofisticação da lei ainda mais longe. Prever quando se poderia romper o casamento antes do prazo. É que os casamentos podem durar sete anos, ou menos, ou até mais. Se não houver paciência para deixar escorrer os sete anos, ou se houver pelo caminho uma terceira pessoa que requisite os serviços de um dos consortes antes de atingidos os sete anos, como se acertar o rompimento antecipado do vínculo? Haverá uma cláusula de rescisão? Matéria volátil, a da cláusula de rescisão: se tiver pouco valor, sinónimo de que não se acredita que os sete anos sejam passados em pleno casamento – ou que o vínculo tem pouco valor; se for astronómica, à medida das grandes estrelas do futebol, é porque alguém quer prender o outro com a força de correntes de aço. E se a união se for cimentando e, no fim dos sete anos, as duas pessoas quiserem continuar juntas? Serão proibidas de o fazer, para não contrariarem a fantástica visão de quem legislou? Ou terão que renovar votos por mais sete anos: nova boda, novas prendas, mais convidados, mais lauto manjar e folclore a preceito? A deputada alemã será sócia de uma empresa de eventos envolvida no negócio dos casamentos?

No tempo em que vivemos, já nada espanta quando damos de caras com a fobia de quem legisla. O que é raro é não haver leis que versam sobre o insólito. Outro exemplo: há tempos soube-se que o governador de um Estado brasileiro embirrou com o uso do gerúndio, porque os funcionários – talvez tomados pelo vírus que caricatura o alentejano – estavam habituados a responder “vai-se fazendo” de cada vez que eram interpelados sobre o andamento de projectos e obras. Ora o “vai-se fazendo” é um eufemismo para “deixa para amanhã”, ou “logo se vê”, ou “talvez se faça”. Irritado, o governador proibiu, por decreto, a utilização do gerúndio. Para coagir os preguiçosos funcionários a fazerem, em vez de “irem fazendo”. E assim, por força de decreto, se mudam as convenções gramaticais a uma língua.

1 comentário:

Anónimo disse...

Já agora, aqui deixo mais ideias tendo como base esta proposta da deputada alemã:
- O casamento tem uma garantia de 7 anos, qualquer problema detectado nesse período que se prove ser "de origem", determina o fim do casamento. Se o problema for causado por "má utilização" do mesmo, aí os casados aguentam o martírio, pois merecem o castigo.
- Para manter a garantia durante os 7 anos, o casamento obriga a um plano de manutenção: revisões periódicas (uma aprofundada reflexão a dois que termina com uma "carimbadela").
- A partir do momento que estão casados, os dois podem optar por se manterem "na origem", ou por material alternativo. Se este for de qualidade equivalente ou superior à de origem, mantem-se a garantia dos 7 anos. Se for material de qualidade inferior, aí perde a garantia e a qualquer momento uma das partes pode rescindir.
- A partir do 7º ano, o casamento deverá fazer anualmente a Inspecção Periódica Obrigatória (um juri independente vai morar uma semana lá para casa).
- Ao 15º ano, são permitidas manutenções com material de qualquer origem e qualidade. Se durou até aqui, nunca mais acaba!
Ponte Vasco da Gama