Por entre o reboliço de negociadores e comunicação social, que não se cansam de aclamar o “Tratado de Lisboa”, há expressões de desencanto, até de alguma virulenta oposição. Sinto-me dividido. Europeísta convicto, acho exageradas algumas manifestações dos que vêm na União Europeia aquilo que dificilmente ela alguma vez será – os Estados Unidos da Europa, com os países remetidos à condição de anónimas regiões. Mas, europeísta convicto, não me revejo na euforia uníssona de políticos envolvidos nas negociações.
Se há virtude nestas negociações, é trazer a Europa para os holofotes. Poderá haver alguma razão no desconforto dos críticos, quando acusam a coligação de políticos nacionais, eurocratas e entusiasmados jornalistas de tecerem um tapete por onde campeia alguma manipulação. Todavia, as páginas dos jornais têm sido esconderijo de prosa contra-sistema. Se as pessoas estiverem interessadas em consumir o que vai além da retórica oficial, não há carência de material alternativo. É aqui que vejo o lado positivo, um momento deliberativo por excelência: informação à disposição das pessoas que se queiram interessar pela União Europeia. Cabe-lhes digerir a informação, perceber onde existe manipulação, onde termina a propaganda iconoclasta que parece divinizar a Europa unida, os erros factuais dos seus críticos. E saber se são muitos os que se interessam pela recolha de informação.
Um europeísta convicto pode não morrer de amores pelos resultados de Lisboa. Pode estar convencido que o “Tratado de Lisboa” reproduz 97% da Constituição abortada e, por isso, manifestar perplexidade – mesmo que aceitasse a Constituição. Ambos os documentos são uma e a mesma coisa. Se a Constituição foi rejeitada em França e na Holanda, que houvesse a decência de respeitar as regras concebidas por todos os participantes no processo. Sem a ratificação em todos os países, a Constituição estava destinada ao baú das recordações. Mesmo que nutrisse por ela alguma simpatia, este era o destino inevitável. Caso os meandros da política não fossem uma cela escura onde as negociações são secretas e a força das leis nada vale se a vontade política remar noutra direcção.
É aqui que o processo começa a fraquejar, a expor-se a críticas impiedosas dos adversários. Sobram acusações de falta de democracia. Não diria, como denunciam (erradamente) alguns dos críticos, que a União Europeia perde qualidades democráticas com este tratado. A acusação faz sentido quando é ajuizado o processo usado. Retomar a Constituição da União Europeia, mascarando-a com outro nome, é a pedra de toque dos que, quase sem se dar conta, se enredam numa lamentável ausência de cultura democrática. A sua aposta conjunta foi derrotada pelos eleitores holandeses e franceses. Vieram agora ressuscitar uma Constituição que, eufesticamente, tinha sido colocada no “congelador” – para reflexão. Quando nada havia a reflectir, pois o objecto da reflexão devia ter sido enterrado, falasse o direito mais alto que a vontade política. Para piorar o diagnóstico, suspeita-se de um caldo de vontades dos líderes nacionais (e das instituições da União) para que o “Tratado de Lisboa” não passe pelo crivo dos referendos.
Devo dizer que me causam estranheza referendos numa democracia que se diz parlamentar e representativa. No caso do “Tratado de Lisboa”, é bom recordar que não há tradição das Constituições nacionais (e suas revisões) serem servidas nos boletins de votos em referendo. Custa-me a perceber a lógica dos que exigem o mais na União quando são complacentes com o menos nos seus países. Mas adiante. Reitero a opinião de que é um exercício inútil colocar à consideração dos cidadãos a aprovação ou rejeição das revisões dos tratados europeus. Por culpa de quem os cozinha, são um produto complexo, inexpugnável ao cidadão comum. Defender um referendo nestas circunstâncias é conceber o princípio do voto irresponsável (porque desinformado). Se temos referendo assim, só para sossegar as consciências democráticas de uns quantos, entramos numa democracia que se resume a uma formalidade.
E ainda que continue a ser esta a ideia que tenho acerca do assunto, o contexto mudou e agora referendar o “Tratado de Lisboa” deixou de ser um projecto perturbante. É que é tanta a urgência em o ratificar, em segredo, escondido do julgamento popular, que mais sou obrigado a perder os pruridos pessoais contra o referendo. A forma desastrosa como o processo foi conduzido expôs os seus actores a esta inabilidade. E deu trunfos para a raiva latente que se nota nos textos dos adversários do rumo actual da Europa unida. Com outra agravante. Porventura toldados pela fúria, escorregam com facilidade para o erro. Eles, tanto como os artífices de Lisboa que querem esconder a União Europeia dos cidadãos, contribuem para a desinformação. Desmotivam as pessoas a tomarem contacto com a Europa unida – ou, quando o fazem, partem com ideias erradas acerca do que é a União Europeia.
Pelo seu gabarito intelectual, exigir-se-ia maior cuidado na divulgação de informação, mais honestidade intelectual que tanto apregoam. Três exemplos: não fica mais fácil o caminho para uma Europa federal (seja lá o que isso for), sugerindo-se que se dediquem a estudar o federalismo antes de tirarem conclusões precipitadas; Portugal não perde o “seu” comissário: todos os países o hão-de perder durante cinco anos; uma comunidade destas só pode funcionar se as decisões forem tomadas por maioria qualificada. Por quê insistir tanto nos “interesses nacionais” (que, a crer nos críticos, são delapidados pelo “Tratado de Lisboa”)? Hoje votamos de vencido, amanhã estaremos entre os que concorrem para a vontade maioritária. Se não gostarmos, resta-nos a porta da saída.
São as dores de parto da Europa unida. Prolongadas, mas necessárias. Paradoxal Europa, esta: já leva mais de cinquenta anos de vida e ainda lambe as feridas pós-parto.
Se há virtude nestas negociações, é trazer a Europa para os holofotes. Poderá haver alguma razão no desconforto dos críticos, quando acusam a coligação de políticos nacionais, eurocratas e entusiasmados jornalistas de tecerem um tapete por onde campeia alguma manipulação. Todavia, as páginas dos jornais têm sido esconderijo de prosa contra-sistema. Se as pessoas estiverem interessadas em consumir o que vai além da retórica oficial, não há carência de material alternativo. É aqui que vejo o lado positivo, um momento deliberativo por excelência: informação à disposição das pessoas que se queiram interessar pela União Europeia. Cabe-lhes digerir a informação, perceber onde existe manipulação, onde termina a propaganda iconoclasta que parece divinizar a Europa unida, os erros factuais dos seus críticos. E saber se são muitos os que se interessam pela recolha de informação.
Um europeísta convicto pode não morrer de amores pelos resultados de Lisboa. Pode estar convencido que o “Tratado de Lisboa” reproduz 97% da Constituição abortada e, por isso, manifestar perplexidade – mesmo que aceitasse a Constituição. Ambos os documentos são uma e a mesma coisa. Se a Constituição foi rejeitada em França e na Holanda, que houvesse a decência de respeitar as regras concebidas por todos os participantes no processo. Sem a ratificação em todos os países, a Constituição estava destinada ao baú das recordações. Mesmo que nutrisse por ela alguma simpatia, este era o destino inevitável. Caso os meandros da política não fossem uma cela escura onde as negociações são secretas e a força das leis nada vale se a vontade política remar noutra direcção.
É aqui que o processo começa a fraquejar, a expor-se a críticas impiedosas dos adversários. Sobram acusações de falta de democracia. Não diria, como denunciam (erradamente) alguns dos críticos, que a União Europeia perde qualidades democráticas com este tratado. A acusação faz sentido quando é ajuizado o processo usado. Retomar a Constituição da União Europeia, mascarando-a com outro nome, é a pedra de toque dos que, quase sem se dar conta, se enredam numa lamentável ausência de cultura democrática. A sua aposta conjunta foi derrotada pelos eleitores holandeses e franceses. Vieram agora ressuscitar uma Constituição que, eufesticamente, tinha sido colocada no “congelador” – para reflexão. Quando nada havia a reflectir, pois o objecto da reflexão devia ter sido enterrado, falasse o direito mais alto que a vontade política. Para piorar o diagnóstico, suspeita-se de um caldo de vontades dos líderes nacionais (e das instituições da União) para que o “Tratado de Lisboa” não passe pelo crivo dos referendos.
Devo dizer que me causam estranheza referendos numa democracia que se diz parlamentar e representativa. No caso do “Tratado de Lisboa”, é bom recordar que não há tradição das Constituições nacionais (e suas revisões) serem servidas nos boletins de votos em referendo. Custa-me a perceber a lógica dos que exigem o mais na União quando são complacentes com o menos nos seus países. Mas adiante. Reitero a opinião de que é um exercício inútil colocar à consideração dos cidadãos a aprovação ou rejeição das revisões dos tratados europeus. Por culpa de quem os cozinha, são um produto complexo, inexpugnável ao cidadão comum. Defender um referendo nestas circunstâncias é conceber o princípio do voto irresponsável (porque desinformado). Se temos referendo assim, só para sossegar as consciências democráticas de uns quantos, entramos numa democracia que se resume a uma formalidade.
E ainda que continue a ser esta a ideia que tenho acerca do assunto, o contexto mudou e agora referendar o “Tratado de Lisboa” deixou de ser um projecto perturbante. É que é tanta a urgência em o ratificar, em segredo, escondido do julgamento popular, que mais sou obrigado a perder os pruridos pessoais contra o referendo. A forma desastrosa como o processo foi conduzido expôs os seus actores a esta inabilidade. E deu trunfos para a raiva latente que se nota nos textos dos adversários do rumo actual da Europa unida. Com outra agravante. Porventura toldados pela fúria, escorregam com facilidade para o erro. Eles, tanto como os artífices de Lisboa que querem esconder a União Europeia dos cidadãos, contribuem para a desinformação. Desmotivam as pessoas a tomarem contacto com a Europa unida – ou, quando o fazem, partem com ideias erradas acerca do que é a União Europeia.
Pelo seu gabarito intelectual, exigir-se-ia maior cuidado na divulgação de informação, mais honestidade intelectual que tanto apregoam. Três exemplos: não fica mais fácil o caminho para uma Europa federal (seja lá o que isso for), sugerindo-se que se dediquem a estudar o federalismo antes de tirarem conclusões precipitadas; Portugal não perde o “seu” comissário: todos os países o hão-de perder durante cinco anos; uma comunidade destas só pode funcionar se as decisões forem tomadas por maioria qualificada. Por quê insistir tanto nos “interesses nacionais” (que, a crer nos críticos, são delapidados pelo “Tratado de Lisboa”)? Hoje votamos de vencido, amanhã estaremos entre os que concorrem para a vontade maioritária. Se não gostarmos, resta-nos a porta da saída.
São as dores de parto da Europa unida. Prolongadas, mas necessárias. Paradoxal Europa, esta: já leva mais de cinquenta anos de vida e ainda lambe as feridas pós-parto.
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