15.10.07

Um intruso por dentro


Às vezes conseguia-se ver como se estivesse por fora de si. Olhar de fora para dentro – ou se houvesse um espelho que reflectisse a sua imagem, uma crítica fotografia do que não conseguia ver quando se investia na sua pessoa. Ao olhar por fora, por vezes desconhecia-se. O que via era um intruso que tomara conta do seu corpo. Via gestos autómatos que lhe traziam o desconforto. Havia palavras ditas que profundamente o desgostavam. Actos de que não se orgulhava.

Era então que sentia uma vontade indómita de sair de fora de si e à sua interioridade regressar. Nem que fosse para se resguardar da fotografia tirada do exterior, daquela fotografia que dava uma imagem de fealdade que tanto o atormentava. Ou regressar à carne já gasta dos anos vividos, só para asfixiar a sensação de que em si habitava um intruso. Nisto, navegava num oceano de interrogações. Se um intruso havia dentro de si; ou se o que estava convencido de ser era o intruso, quando afinal o suposto intruso o não era, mas antes a imagem fidedigna – mas reprimida – da sua essência. Perdia dias nestas deambulações pelos meandros do ser, que só traziam mais dúvidas que respondiam às interrogações levantadas.

Ficava perturbado pela sensação que o estranho era ele. Atormentado pela sensação de que afinal não era o que estava convencido de ser. Pensava: todos temos uma imagem do que somos, acreditamos naquilo que pensamos ser. E quando assomam as dúvidas sobre a essência do que em nós vagueia, todas as palavras perdem sentido, as coisas oferecem-se com o odor inabitual, e até os pontos cardeais perdem o devir da bússola. Enquanto o corpo vai apoderado pelo desnorte, as ideias batem forte contra o peito, ensanguentam-no na voracidade das coisas que jorram intensas e diferentes do formato preconcebido que fermentava a rotineira passagem de testemunho entre os dias repetitivos.

A perturbante imagem do intruso por dentro consumia-o – tempo e forças. Sabia que todos os instantes levados pela dialéctica poderosa entre o que julgava ser e a ácida sensação de nele habitar algo de tão diferente, eram instantes que adensavam o labirinto onde se metera. As forças exauridas a cada vez que ensaiava o exercício. Mais os dias passavam, mais as interrogações se acastelavam sobre a cabeça, menos a capacidade para cicatrizar as feridas que abriam de cada vez que estalava na boca a descoberta dos sedimentos do intruso em si. A carne viva expunha-se, dobrava a pele protectora à espera das salgadas e dolorosas dores da vida nela acamarem. Uma doentia vocação para condoer os dias fartos da trivial sucessão entre si.

Por mais nítida que fosse a sensação de que um estranho partilhava a sua existência, não se conseguia habituar à ideia. Revisitava os tempos idos, as pessoas, as palavras ditas, os actos cometidos. Revia-os à luz do intruso que se convencia, a cada passo, que afinal talvez fosse ele. Perguntava se as pessoas, as palavras, os actos tinham o mesmo significado pela lente do intruso. Ou então interrogava-se se acaso teriam essas pessoas, ou as palavras, ou os actos obedecido ao mesmo roteiro se, no remoto tempo repisado, o intruso em si tivesse sido o protagonista. Desconfiava que no ensaio de retorno a outrora havia sinal de revisão do tempo emoldurado. De tanto recusar fotografar o passado, ecoava a perplexidade por percorrer o caminho que sempre negara.

Eram as pessoas, as pessoas mais próximas, que reforçavam a perturbante dúvida do intruso por dentro. As pessoas retratavam-no como ele julgara não ser. A certa altura, na peregrinação permanente de si, já começara a duvidar da densa camada que sedimentava os anos vividos, se tudo aquilo tinha acontecido – todas as pessoas, ou seriam outras, tal como ele, desconhecidas. Talvez fosse o tempo biombo que desdobra a existência em duas dimensões. A que traz uma anestesiante sucessão dos dias, os planos sempre adiados, promessas de mudança por cumprir. E a outra, exterior palco de onde é possível sair do corpo e ver como era actor de si mesmo. Lá de fora, onde dava conta do intruso que habitava em si.

De tanto se debater contra a poderosa imagem do estranho que afinal era, a certa altura nem sequer sabia se era o que julgava ser ou já o intruso que discernia ao olhar-se de fora. Ou ainda nada disso.

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