19.10.07

No rés-do-chão do pensamento



Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.


(Variações em torno de “Opiário”, poema de Álvaro de Campos)

O desassossego. O tremendo desassossego pelas grotescas exibições do pensamento que vegeta pelas caves serôdias de onde arremetem os paladinos da menoridade intelectual. São palavras e actos que ensombram os dias claros do pensamento mais alto. Mas: e o que é o rés-do-chão do pensamento se a sua antítese, o nem sempre clarividente pensamento mais alto, se aprisiona num arrogante distanciamento, brame com pesporrência contra a inferioridade intelectual dos que vegetam nas caves do pensamento?

É verdade que o desassossego vem bater à porta, com fragor, de cada vez que os baluartes da vilania intelectual se fazem notar. Há nesse desassossego reacção instintiva, na impossibilidade de não se fazer notado o gritante pensamento que vem dos baixios. E, contudo, não devia produzir dor sequer. Não devia, sequer, fazer-se notar. Por exalar o bolorento cheiro das arrecadações mentais onde devia estar acantonado. E porque as tonitruantes bandeiras arpoadas no pérfido sinalizar do rés-do-chão do pensamento trazem a mediocridade alheia, chaga que vem de fora para dentro quando devia cessar a sua marcha no limiar do ser.

O mais incómodo nem é o rés-do-chão do pensamento. O que desassossega nem são as exalações perturbantes do ininteligível raciocínio – ou da negação da articulação coerente do raciocínio. Haveria de soar mais alto o convencimento de que pelo raciocínio alheio só podem falar os seus detentores, só eles responsabilizados. Se há condoer que se nota quando a vilania do pensamento esbarra no peito e o estilhaça em feridas, é a errada cicatriz que fica por fechar sem terem sido as dores individuais do pensamento que a causaram. O que mais aflige é cativar a atenção pelo rés-do-chão do pensamento alheio.

É isso que está errado – não tanto os baixios fétidos de onde exala o rés-do-chão do pensamento. O tempo gasto a decifrar os ininteligíveis meandros de um pensamento que desagua num labirinto sem saída. A armadilha de atentar nas palavras alheias de onde goteja o gorduroso pensamento que traz as náuseas e o incómodo por saber que há quem consiga enlamear-se nesses baixios. Esquecendo o seu contrário: os sublimes momentos de exaltação da inteligência, que povoam a literatura, a música, a pintura, a paisagem, a natureza, as pessoas queridas ao perto ou ao longe.

E o que está errado também é a superioridade intelectual dos que denunciam o rés-do-chão do pensamento. Há uma tentação, diria quase narcisista, de ostentar a muita inteligência que é caução para denunciar os que residem nas catacumbas do pensamento. A voragem pela condição de “intelectual”. E, contudo, a pesporrência da vanguarda intelectual é o lado contrário da moeda onde habita do rés-do-chão do pensamento. O que conta não é estar no lado contrário da moeda; é ser parte da mesma moeda. A diligência com que são apontados a dedo os exemplos de menoridade intelectual traz tanto desassossego como o rés-do-chão do pensamento. O pedantismo das elites intelectuais é tão nauseabundo como o que se propõe desmascarar.

O remédio contra todo este desassossego é o ópio do poeta, um metafórico ópio que obriga a ensimesmar. Não será narcisismo, ou um grito de envaidecimento individual que profere a grandeza do ser como antítese das caves do pensamento em que muitos vogam e da dilacerante e zelosa aura de superioridade intelectual dos que zombam da vozearia inconsequente vinda das cavernosas lotas do pensamento. Será talvez um narcisismo inócuo, um paradoxal narcisismo que não se mostra para o exterior. Ou um umbiguismo terapêutico, que se esconde das dores do mundo e do que é exterior ao ser. Poderá ser uma deriva individualista, a recusa em sentenciar os mares que cercam a ilha tão individual. Uma exigência de honestidade intelectual. A fuga dos rios poluídos do rés-do-chão do pensamento, tão insidiosos que não merecem um segundo de atenção.

Será difícil resistir à tentação fácil de esmagar os paladinos do cavernoso pensamento. Mas quando se der conta que a tentação é o roteiro para a envaidecida liturgia da superioridade intelectual, abrem-se de par em par as janelas para a fuga ao que é exterior.

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