5.10.07

Santa república


Nem a contradição é sinal de falsidade, nem a falta de contradição é sinal de verdade”, Blaise Pascal

Pena: que as comemorações da república se tenham banalizado, perdido até o fulgor que a solenidade do momento carecia. A tão importante república não é valorizada como merece. As pessoas nem sequer se lembram que neste dia, há quase um século, a anacrónica monarquia foi deposta, um singular acto triunfante do povo, emancipado das garras tentaculares de uma nobreza anquilosada. Talvez por já ter passado quase um século, perdeu-se o hábito de festejar condignamente a república. As décadas que passaram diluíram o lustro. Nem só o tempo: o desinteresse das pessoas, tão habituadas à república, ou tão cansadas dela, que só querem aproveitar o feriado para comprazimento pessoal. A cidadania cede o passo perante o hedonismo individual.

É pena: ver o lastimável cortejo de republicanos saudosistas que desfilam nas patéticas celebrações oficiais. Uma brigada do reumático que, ano após ano, vai minguando – que a velhice ceifa vidas de republicanos dos quatro costados, que ficam na parada, militantes e devotos, sagrando a já velha república, exorcizando fantasmas dos reis e corte adjacente que ainda assaltam os seus pesadelos. Imagino-os, feridos no orgulho republicano ao verem os políticos de agora, enfatuados, no dever de proferirem oratória a preceito, de como aparecem contrariados – que em vez das cerimónias oficiais já podiam estar em fim-de-semana alargado com a família e, em vez disso, regurgitam as banalidades usuais para meia dúzia de almas penadas que insistem em comemorar um feriado a que a larga maioria nem sequer recorda o significado.

A memória tão volátil desencontra-se com os seus deveres, derrotada pelo tempo voraz que pesa, derrotada pela fatuidade dos interesses mundanos. Alguns insistem em educar para a cidadania; e, no entanto, é só um pregar no deserto, porque as pessoas demitem-se dos deveres de cidadania e deixam falar mais alto interesses individuais. É a era do egoísmo que não se compadece com festejos colectivos. O habitual cortejo de lamentações, também elas frívolas. Os sacerdotes do republicanismo à maneira antiga hão-de sentir o orgulho republicano ferido ao notarem o desinteresse das gentes e o ar contrariado com que os políticos com direito a coroa do poder participam nas celebrações.

O futuro não é risonho para os sacerdotes do republicanismo: eles envelhecem, vão partindo à medida que os corpos cansados não resistem à doença. Com os funerais dos sacerdotes do republicanismo, é a república que vai perdendo significado. Vão perdendo força as vozes que se deitam em oratórias inflamadas a sacralizar a valorosa república, como se em todos os cinco de Outubro voltassem a esbracejar os fantasmas da monarquia deposta. A gritaria vem cedendo o lugar a vozes que se ouvem ao longe, abafadas pela vozearia dos que mergulham em inconsequentes assuntos que revolvem banalidades. À medida que ficam menos audíveis as vozes que tecem loas à república, perde-se a sua santidade, tomada pela banalização.

A república adoeceu. Os senadores que ainda têm força para a sacralizar são personagens que povoam a riqueza, provando o contrário da frugalidade material dos genuínos princípios republicanos. Haverá muita diferença entre a nobreza de fartos privilégios que se banqueteava na corte do rei e os senadores que subiram na escada dos negócios por terem sido triunfantes personagens no terreno da república, amesendados também num lauto banquete que distribui ocultos proventos que se traduzem em abastança material? É a corruptela da república, ou de como também a república se viciou na sedução das regalias que o dinheiro e o tráfico de influências autorizam.

Casta por casta, sobram poucas diferenças entre monarquia e república. É que até há sucessões dinásticas nas repúblicas, ainda que elas não estejam garantidas por força de decreto. A república perdeu a face e hoje não é coisa que se diferencie muito de uma monarquia. Numa como noutra, castas vingaram e trataram da vidinha. O povo, sempre um adereço folclórico, é convidado ao consentimento. No caso da república, ainda com o fantasma da monarquia brandido todos os cinco de Outubro por uns ingénuos que aclamam a pureza da república de antanho, com o beneplácito de outros nada ingénuos que fizeram da república o seu banquete.

A república leva quase um século de vida. Quanto mais santificada, mais adoece e se entrega nos braços da podridão.

2 comentários:

Anónimo disse...

Então e alternativa?
Pelo que posso subentender das tuas palavras, o tempo trata de colocar uma e outra em pé de igualdade, no que diz respeito aos vícios de que padecem.
Se calhar a solução é cada um dos sistemas rodar, isto é, após 20 anos alternam (palavra muito em voga, nomeadamente no que diz respeito a sistemas).
Ou tens outra proposta?
Vá lá!... Não chega apontar os defeitos...
Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

Divide-nos a metodologia: tu achas que a crítica exige de seguida uma proposta alternativa. Ora isso é castrador. Se a insatisfação diante dos olhos fosse reprimida de cada vez que não encontramos alternativa para o que criticamos, os medíocres estariam nas suas sete quintas. Não é a ausência de alternativa que pode calar a crítica. Aliás, criticar é um momento construtivo, de lucidez.
Em resposta ao teu repto: não, admito que não tenho alternativa. Só que, repito-o: é isso que me impede de deixar falar a crítica?
PVM