17.10.07

Do orçamento, para desmascarar (mais um) embuste


Até podem chamar mania da perseguição, que eu confirmo. Mas dói-me quando os políticos se embelezam com declarações pomposas, mas fátuas, que escondem debaixo do véu o que convém permanecer escondido. Andou por aí aplauso ruidoso à gestão do orçamento deste governo. Já anunciaram que o défice orçamental vai ser inferior (3% do PIB) ao que tinham previsto no final do ano passado (3,3%). E reclamam o estatuto de heróis, massajando os impérvios egos pelos dons de presciência que nos ofereceram.

É provável que os funcionários do ministério das finanças tenham andado semanas a fio de máquina calculadora na mão (versão prosaica para os complexos modelos econométricos manipulados por computador) fazendo e refazendo as contas para anunciar a boa nova. Pela primeira vez em muitos anos, o défice fica abaixo das previsões. Dantes, as previsões saíam furadas. Ficava-se com a impressão que ou os orçamentos estavam mal feitos, ou se gastava muito acima do previsto, ou os contribuintes se especializavam na sublime arte de fugir aos impostos, ou o exército de economistas com grandes dotes premonitórios era inepto. Agora é que estamos bem entregues. Uma equipa vigilante, com as contas bem feitas, que se deu ao luxo de gastar menos que o previsto.

Tenho para mim – que não consigo prescindir do cepticismo militante em relação à trupe que governa – que tudo isto não passou de uma cuidadosa manobra, bem arquitectada para produzir a enxurrada de elogios. Ninguém me convence que abusaram da prudência, quando há um ano deram corda aos modelos econométricos e saldaram a confecção do orçamento para este ano com uma previsão de défice de 3,3%. Aposto que já sabiam na altura que essa meta era alcançável com facilidade. Preferiram errar por excesso, pois estamos é habituados ao catastrófico efeito das estimativas por defeito. A imagem – a sempre sagrada imagem – sai melhorada quando se mostra que ao chegar ao fim do ano sobrou dinheiro. Depois, os governantes ficam à espera do aplauso – e, de preferência, unânime.

Se me é permitido, eu não aplaudo. Em vez de me desfazer em louvores e agradecimentos pela notável gestão do orçamento, desconfio. Com as exaustivas operações de cosmética que esta gente faz à sua imagem pública, ninguém me tira da ideia que as expectativas foram colocadas numa fasquia baixa, porque é mais fácil superá-la do que ultrapassar um desafio exigente. É a via dos medíocres. E, no entanto, mais me parece que são tratos de polé que a gestão do dinheiro público continua a sofrer. Habituados a nivelar por baixo, apoderados por uma certa tacanhez colectiva, ficámos (quase) todos entusiasmados porque o défice estará uns míseros 0,3 pontos percentuais abaixo do previsto.

No meio da excitação colectiva, alguns comentadores conseguiram decifrar o emaranhado de números, desmascarando o embuste. As contas públicas melhoraram, mas os remédios aplicados cheiram a batota. O problema é teimosamente gastarmos mais do que os recursos amealhados. A solução é a mais fácil: cortar nos investimentos (o que, em si, não é mau: sempre se evitam inúteis despesas que dão a imagem de um Estado balofo sem haver razões para estulta grandiosidade) e aumentar o roubo dos cidadãos, legalizado via impostos (que aumentaram, como têm aumentado desde há vários anos). As despesas públicas viciosas e parasitas – as “despesas correntes”, que a maioria dos economistas considera “rígidas”, isto é, não podem deixar de se realizar – essas subiram. Contrariando mil e uma promessas, repetidas até ao cansaço da audição, de que iriam diminuir e muito, no solene altar das reformas do Estado anunciadas com tanta pompa e circunstância. Este é o bilhete do insucesso do governo na gestão do orçamento. Com a estratégia da mentira repetida à exaustão, que de tão repetida passa a engalanar-se como verdade.

Aos poucos que tiveram a honestidade intelectual de denunciar o embuste, faltaria explicar porque escasseia a coragem para cortar a eito na despesa corrente. Primeiro, políticos profissionais alimentam-se de uma administração pública com tamanho de elefante. É aí que se acoitam quando o tapete do poder sai debaixo dos pés. Segundo, cortar nas despesas correntes é emagrecer as clientelas que dependem desse cheque generoso, com uma desagradável dupla consequência: com menos clientelas que chegam ao gabinete do ministério de mão estendida, é menor a ostentação do poder; e se as clientelas habituadas a lautos manjares à mesa do orçamento forem disso desabituadas, podem, por vingança, traficar influências para que outros venham tomar conta do trono.

Aos que pagam impostos, reservado o papel de palonços nesta peça lamacenta.

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